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Herland

O tema de Março do #lerosclássicos2021 era vasto: feminismo, questões de género, LGBT.



Escolhi Herland por o ter há alguns anos já na estante e pela premissa: ora imaginemos um mundo onde não há homens, somente mulheres.


Esta obra foi publicada em 1915. Aqui, seguimos um grupo de três homens, pela lente de um deles, Van, o narrador. Numa expedição pela zona da América do Sul, Van, Terry e Jeff descobrem que existe um sítio onde vivem apenas mulheres. Incrédulos, decidem explorar e ver por eles mesmos, e vêem-se imersos numa comunidade que está desligada do resto do mundo há cerca de 2000 anos, no seguimento de guerras e catástrofes naturais.


Incrédulos, repito: ao longo da viagem, e nas primeiras impressões da terra à qual decidiram chamar Herland, os três homens acreditam que não é possível não haver homens algures, escondidos, próximos, e demoram meses a acreditar em tudo aquilo que encontram: um conjunto de mulheres fortes, coordenadas, com agricultura avançada (e estilo de vida vegan!), planeamento urbano, onde não existe guerra, pobreza, crime, violência. Tudo isto, crêem, impossível sem a influência das "características masculinas" tidas como tradicionais, tidas como necessárias à existência de uma sociedade perfeita, de uma utopia tal. Porque tudo o que as mulheres fazem juntas é discutir sobre frivolidades, e algo assim.


Logo após a sua chegada, estes homens têm "tutoras" designadas para que possam aprender a língua uns dos outros, a cultura, os costumes, para que estas mulheres possam aprender o estado do mundo lá fora. O momento mais bizarro e chocante é talvez aquele em que os homens descobrem (e, naturalmente, acham dúbio) como estas mulheres descendem de uma só mulher, que engravidou não por previdência divina, mas por um qualquer milagre natural relacionado com o extremo desejo da maternidade.


No entanto, e apesar desta auto-suficiência (e das atrocidades que desccobrem sobre o mundo "bi-sexual"), as mulheres querem redefinir a forma como têm vindo a viver em sociedade, e há um casamento entre três delas e os três homens que acompanhamos. Porque eles são todos personagens-tipo (Van o sociólogo lógico e racional curioso acerca do mundo, Jeff o tipo sensível que idolatra mulheres, Terry o machão bad boy idiota com complexos de superioridade que acha que as mulheres são objectos sexuais), estas relações tomam rumos completamente diferentes. Especialmente porque as características que estes homens, ocidentais, procuravam nelas, não estavam presentes - e as expectativas das mulheres de Herland quanto à masculinidade também não foram cumpridas.


This led me very promptly to the conviction that those "feminine charms" we are so fond of are not feminine at all, but mere reflected masculinity—developed to please us because they had to please us, and in no way essential to the real fulfillment of their great process.


A premissa é interessante, é uma nova abordagem da narrativa do explorador (como n'A Máquina do Tempo, por exemplo); e é curioso como o sempre lógico Van é forçado a admitir a superioridade desta sociedade. Mas a forma como a sociedade é simplesmente demasiado perfeita (e passamos grande parte do livro numa espécie de estudo antropológico sobre Herland), e como estas mulheres acabam reduzidas a mães - parecendo mesmo ser o seu único interesse -, é muito insatisfatória. As mulheres, aqui, embora independentes dos homens, têm a maternidade como maior ambição, como propósito máximo e projecção de divindade. No fundo, Herland é uma magnificação do papel "doméstico" da mulher, como mãe, como cuidadora. Também há ideias algo problemáticas de eugenia (pureza racial, criminalidade hereditária).


Apesar destas falhas - e de ser potencialmente mais interessante como documento histórico de feminismo ou de ficção especulativa -, Herland é um livro que faz pensar e que levanta questões e critica eficazmente a sociedade patriarcal - e os vários fracassos dos Estados, talvez por não verem os seus cidadãos como filhos. É também interessante ver esta obra à luz da época em que foi publicada, pois enquanto mulheres lutavam activamente pelo direito ao voto, enquanto a sociedade se tentava desligar dos ideais vitorianos, Charlotte Perkins Gilman defendia a reforma da sociedade, a igualdade de género, o feminismo, a forma como se trata do meio ambiente, malthusianismo...


O final, achei abrupto - a minha edição tinha mais cerca de 15 páginas no fim, que descobri serem dedicadas a The Yellow Wallpaper (que é uma obra superior). Julgo que aquilo que eu esperava (um pequeno epílogo) se encontre na sequela, With Her in Ourland, que confesso que não lerei.


3,5/5


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Comentários

  1. Há tantas pessoas a edificar essa obra como um manifesto feminino que me perguntava se era eu que estava maluca, quando eu tinha uma leitura tão distinta. E concordo completamente que reflete "ideias algo problemáticas de eugenia".

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    1. acho que em 1915 pode ter tido o seu "tempo" e "lugar", mas não sobreviveu particularmente bem ao passar do século. enquanto documento histórico, acho válido, mas acho impossível de ler acriticamente. o "the yellow wallpaper" é muito mais interessante, creio (já o li há uns bons anos).

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  2. Apesar de ter ficado decepcionada com o Yellow Wall Paper, tentei ler este também, mas a ideia dos exploradores, ainda por cima, homens, aborreceu-me logo.
    Paula

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    1. sim, o point of view do narrador não é o mais interessante, embora perceba o porquê da abordagem - se fossem mulheres exploradoras (algo que não seria muito comum à época), não haveria a ambiguidade de entendimentos, as novas dinâmicas, ou a introdução de male species em Herland após milénios de "separação"... gostei bastante do the yellow wallpaper, no entanto!

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  3. Este post é capaz de ser dos teus melhores! Muito bem escrito, gostei muito, e, apesar da obra ter claramente os seus problemas, parece uma obra muito interessante! Quero ler sem dúvida

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    1. é interessante, mais em teoria que na execução, mas não é tão bom quanto o potencial do tema revelava :p

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