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Laços de Família

Peguei finalmente no meu segundo livro de Clarice Lispector (mais que isso, escrevi finalmente esta review).


Comprei este livro na Feira do Livro de 2016, naquela que se tornou a minha tradição: comprar um livro de Clarice Lispector todos os anos. Todos os anos tenho seleccionado um título para comprar, aproveitando as promoções da Relógio d'Água (este ano comprei A Hora da Estrela).

Laços de Família difere de A Paixão Segundo GH (o único outro livro que já tinha lido da autora) logo por se tratar de um livro de contos. Cada um destes treze contos gira em torno de um momento específico no quotidiano de cada personagem, um momento que traz consigo uma epifania, uma recordação, ou um exacerbar de um qualquer sentimento. Todos os personagens são fechados em si mesmos, não só no sentido da possível timidez, mas também no sentido em que são, de certa maneira, prisioneiros.

E cada uma das personagens centrais de cada história, maioritariamente mulheres, questiona a sua existência, a sua hipocrisia, sente-se mal, sente nojo, tem rotinas descontentes, sente o engano dessas rotinas, o isolamento, o ódio por coisas tão mundanas como, sei lá, ter um dia mudado de casa e não ter podido levar consigo o cão, um medo enorme em ir para a escola, em celebrar um aniversário, em ter uma galinha, e todos estes sentimentos saem da personagem e entram no leitor.

Todas as histórias são verdadeiramente curtas: "Uma galinha", sobre uma insignificante galinha que escapa, por pouco, a ser almoço, tem três páginas, "O crime do professor de matemática", a tal história do homem que abandonou um dia um cão e agora encontra um cão substituto para expiar de alguma forma a sua culpa e encontrar, finalmente, redenção, tem sete. E é em poucas páginas que Clarice narra histórias de família, mas também de amor, juventude e solidão. Em "O búfalo", uma mulher rejeitada pelo homem que ama vai ao jardim zoológico em busca de ódio e encontra um búfalo.

Mas as histórias que mais se destacaram, para mim, foram "Devaneio e embriaguez de uma rapariga", "Preciosidade" e "A imitação da rosa". A última, especialmente.

Mas, sem saber por quê, estava um pouco constrangida, um pouco perturbada. Oh, nada demais, apenas acontecia que a beleza extrema incomodava.
Ouviu os passos da empregada no ladrilho da cozinha e pelo som oco reconheceu que ela estava de salto alto; devia pois estar pronta para sair. Então Laura teve uma idéia de certo modo muito original: por que não pedir a Maria para passar por Carlota e deixar-lhe as rosas de presente?
E também porque aquela beleza extrema incomodava. Incomodava? Era um risco. Oh, não, por que risco? apenas incomodava, eram uma advertência, oh não, por que adver­tência? Maria daria as rosas a Carlota.
- D. Laura mandou, diria Maria.
Sorriu pensativa: Carlota estranharia que Laura, poden­do trazer pessoalmente as rosas, já que desejava presenteá-las, mandasse-as antes do jantar pela empregada. Sem falar que acharia engraçado receber as rosas, acharia "refinado"...
(...)
Ela ia sorrir. Estava demorando um pouco porém, ia sorrir.
Calma e suave, ela disse:
- Voltou, Armando. Voltou.
Como se nunca fosse entender, ele enviesou um rosto sorridente, desconfiado. Seu principal trabalho no momento era procurar reter o fôlego ofegante da corrida pelas esca­das, já que triunfantemente não chegara atrasado, já que ela estava ali a sorrir-lhe. Como se nunca fosse entender.
- Voltou o quê, perguntou afinal num tom inex­pressivo.
Mas, enquanto procurava não entender jamais, o ros­to cada vez mais suspenso do homem já entendera, sem que um traço se tivesse alterado. Seu trabalho principal era ganhar tempo e se concentrar em reter a respiração. O que de repente já não era mais difícil. Pois inesperadamente ele percebia com horror que a sala e a mulher estavam cal­mas e sem pressa. Mais desconfiado ainda, como quem fosse terminar enfim por dar uma gargalhada ao constatar o absurdo, ele no entanto teimava em manter o rosto envie­sado, de onde a olhava em guarda, quase seu inimigo. E de onde começava a não poder se impedir de vê-la sentada com mãos cruzadas no colo, com a serenidade do vaga-lume que tem luz.
No olhar castanho e inocente o embaraço vaidoso de não ter podido resistir.
- Voltou o quê, disse ele de repente com dureza.
- Não pude impedir, disse ela, e a derradeira piedade pelo homem estava na sua voz, o último pedido de perdão que já vinha misturado à altivez de uma solidão já quase perfeita. Não pude impedir, repetiu entregando-lhe com alívio a piedade que ela com esforço conseguira guardar até que ele chegasse. Foi por causa das rosas, disse com modéstia.

4,5/5 acho que para o ano trago todos da Feira do Livro

Podem comprar esta edição aqui.

Comentários

  1. Parece bem. Ainda não li nada da Clarice. Ups

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    1. Demasiados livros, demasiado pouco tempo, não é verdade? É o segundo que leio da autora, e estou a gostar muito da experiência.

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  2. Não é fácil ter uma galinha, pergunta ao Gonzo :p o livro parece épico

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  3. tenho o livro de contos, fui arrebatada pela escrita da autora. fantástica.

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  4. Falam tanto desta autora que quero mesmo ler algo dela. Deve ser fantástica. Gostei da review :)
    Beijinhos e boas leituras

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    1. Isaura, eu gosto mesmo muito, embora tenha lido apenas dois! Um dia hás de lá chegar :)
      Beijinhos, boas leituras!

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