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O Chão dos Pardais

A minha estreia (tardia) com Dulce Maria Cardoso.


Já ouvira falar maravilhas da autora, nomeadamente do seu livro mais recente, Eliete, e d'O Retorno. Sobre este, não sabia nada - fora a opinião da Alexandra, que gostou menos deste do que de outros que leu da autora. Assim, as expectativas, elevadas, tinham alguma moderação.

O livro inicia com Alice, uma senhora de meia idade com "cabelos louros de boneca", que prepara a festa do 60º aniversário do marido, Afonso. Rapidamente compreendemos que a família é rica, muito - e a grande dificuldade de Alice é pensar na prenda perfeita, em algo que o marido, efectivamente, não tenha (o eterno dilema de saber o que dar a quem já tem tudo). Alice é tão rica que nunca teve de trabalhar, vivendo do que o marido leva para casa; a sua única preocupação é que tudo seja perfeito. Nesse dia, tem um grande choque emocional com a notícia do acidente da Princesa Diana, em Paris.

Mas este livro não é sobre Alice; e não é sobre o seu marido Afonso, que a trai com a secretária, Sofia, e não é sobre Júlio, o noivo de Sofia, nem sobre os filhos de Alice e Afonso, que, embora adultos, têm dificuldades em se manter à altura das exigências dos pais.

A narrativa segue, portanto, algumas personagens, todas elas diferentes e distintas, mas interligadas. Todas as personagens têm vários problemas interiores, sejam estes a infidelidade (de Afonso), as relações online, a homossexualidade, e a riqueza da família de Afonso acaba por trazer uma nova camada aos conflitos: a diferença de classes.

De todas as distâncias que separam as pessoas, a geográfica deve ser a menos importante.

De facto, a diferença de classes, patente nas várias relações que o livro narra, acaba por criar um enorme desequilíbrio: se Afonso usa o seu poder para sua vantagem, sem qualquer remorso ou sentimento de culpa, a sua filha, Clara, por exemplo, não se apercebe da sua posição de vantagem quando aborda a empregada nova, imigrante ilegal, Elisaveta.

Sofia gosta dos luxos a que tem acesso por ser amante do patrão, mas sente-se culpada, usada, e odeia Afonso. Apesar do seu amor por Júlio, não se sente capaz de uma vida banal ao seu lado. Elisaveta sente uma profunda atracção por Clara, filha dos patrões, uma atracção que nunca sentira e que não reconhece. Já Alice, desde o primeiro momento que vira Afonso, sabia que ele era um bom partido - mas que nunca se iriam entender, que nunca haveria amor ou comunicação nesse casamento.

Todas elas vivem em conflitos internos, distintos. E no entanto, os problemas das várias personagens, apesar de individuais, acabam por não estar totalmente separados.

E a autora não julga, mostra apenas os acontecimentos. A forma como a vida junta as pessoas, mas também as separa, e como, nesses momentos, é possível sentir amor, como é possível sentir ódio.

O tempo trabalha a favor das fraudes. É sempre preciso que alguém queira saber o que se passou. E ninguém quer.

O livro convida-nos a reflectir sobre cada personagem, apresentando algum contexto, familiar, passado ou presente sobre cada um. São todos personagens principais, igualmente relevantes, com o seu contributo para o todo. É a tragédia a que, subitamente, todos são expostos, que traz alguma mudança, drástica ou não, às suas vidas.

4/5

Podem comprar esta edição aqui.

Comentários

  1. Bela capa e foto também
    'De todas as distâncias que separam as pessoas, a geográfica deve ser a menos importante.' não sei se será a menos importante mas de facto há distâncias mais importantes
    No início do post estava a pensar que seria um livro que não me interessaria, pelos temas tratados (pessoas ricas, prendas, a morte da princesa Diana, etc.) mas conforme continuei fiquei cada vez mais desperto e curioso com o livro, talvez lê um dia!
    Agora que já te estreaste com a Dulce Maria Cardoso irás querer ler mais?

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    1. belo cappuccino numa pastelaria onde temos de ir os dois um dia :p
      será maior a distância emocional, afectiva, por exemplo, do que a geográfica :$ já estivemos longe dois meses, mas sempre juntos :p
      o livro tem um início bizarro e não prende muito, mas a narrativa melhora e surpreende, de facto!
      vou querer ler mais sim - ouço falar especialmente muito bem de "O Retorno"!

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    2. Temos sim!
      É verdade Ba, mas sempre juntos sim :p
      Não conheço mas se um dia o leres cá estarei para ler a review!

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    3. It's a date :p
      Sempre juntos mesmo :$

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  2. Este é o único livro da DMC que ainda me falta, porque sempre me pareceu o menos interessante de todos e, sendo estas edições carotas, há que fazer escolhas. Sem querer parecer muito socialista, a vida dos ricos atrai-me sempre menos que a dos pobres ou remediados (adoro esta palavra, é tão retro!), mas este também há-de cá vir parar!
    Para quem gosta de contos como nós, também é de espreitar Tudo São Histórias de Amor. Há lá um sobre a queda da ponte de Entre-os-Rios que me tocou particularmente.
    Mesmo se não lhe deste a nota máximo, fico contente por teres gostado q.b. desta autora que tanto admiro.
    Paula

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    1. Este veio de uma promoção "cromática" da Tinta da China, em que livros azuis tinham 50% de desconto :) daí ter começado por este, que é daqueles que sempre ouvi dizer menos bem.
      "Remediados" é tão livro da Alice Vieira - onde se aprendia que as pessoas não eram pobres, eram remediadas! Neste livro, diria que o interessante mesmo são os contrastes apresentados, as dificuldades que uns sentem e os outros nem vêem, devido ao seu background socioeconómico.
      Irei investir mais nela, agora que aí vem a Feira do Livro!

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  3. Da autora apenas li "O retorno" e gostei mesmo muito. Tenho o "Eliete" na estante e a capa dele é tão bonita como a deste.
    Gostei muito da tua opinião, embora seja, como a Paula, mais atraída para a vida dos mais remediados que para a vida dos mais "forrados". Contudo, não me importaria nada de entrar e conhecer a vida de todos esses protagonistas que moram n' O Chão dos Pardais, porque a Dulce escreve mesmo bem!

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    1. Tenho "O Retorno" na wishlist! Toda a gente diz maravilhas.
      Também partilho dessa preferência, mas este livro faz um óptimo papel a mostrar os contrastes - por exemplo, a Sofia e a vida que leva com o amante (o patrão) vs a vida que sabe que irá levar com o noivo...

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  4. Nunca li nada desta autora, mas está na minha lista de compras para a Feira do Livro. Folheei o novo livro e achei a escrita dela interessante, por isso quero conhecer mais. Vou ver que oportunidades a Tinta da China terá na Feira. :)

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    1. Este veio de oportunidade cromática da Tinta da China :) já há muito que tinha curiosidade com a autora, e a curiosidade mantém-se, até porque me disseram que, dela, este até é o "mais fraco". Venha a Feira do Livro! :)

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