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O Martelo

Cheguei a esta obra sem saber ao que ia.


Foi-me indicado O Martelo como a sequência lógica por ter gostado de Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas; também me foi dito, pela Gabriela, que estava na Feira do Livro de Poesia e mo recomendou, que a presença da autora, Adelaide Ivánova, no Instagram, era forte. Comprei o livro, segui a autora e dirigi-me a um café, para começar a ler.

É poesia - e vocês já saberão a minha relação complicada com o género.

O Martelo é um livro sobre sexualidade feminina e violência (violência sexual incluída), narrado por uma voz feminina anónima. O livro está dividido em duas partes, inspirado, segundo a própria autora, no primeiro Imperador Romano Cristão (Constantino), que estabelecera que a violação e o adultério eram ambos crimes semelhantes, cometidos pela mulher.

Sim, precisamente.

É um livro violento, é certo, mas é um livro que mostra que a autora não tem receio em se exprimir. E a violência nunca é directa, é relatada como se num sonho, num patamar à parte, quase distante. Na primeira parte, é-nos exposta a situação pós-violação, com médicos, juízes, escrivãs, testemunhas, dilemas interiores, o martelo debaixo da almofada. Mas também situações exteriores, como a mulher de burqa ou Laura de Vermont.

corpo de delito é
a expressão usada
para os casos de
infração em que há
no local marcas do evento
infracional
fazendo do corpo
um lugar e de delito
um adjetivo o exame
consiste em ver e ser
visto (festas também
consistem disso)

deitada numa maca com
quatro médicos ao meu redor
conversando ao mesmo tempo
sobre mucosas a greve
a falta de copos descartáveis
e decidindo diante de minhas pernas
abertas se depois do
expediente iam todos pro bar
o doutor do instituto
de medicina legal escreveu seu laudo
sem olhar pra minha cara
e falando no celular

eu e o doutor temos um corpo
e pelo menos outra coisa em comum:
adoramos telefonar e ir pro bar
o doutor é uma pessoa
lida com mortos e mulheres vivas
(que ele chama de peças)
com coisas.

--- o urubu

E o príncipe, absolvido (à mulher, o trauma, sentenciado).

Na segunda parte do livro, a relação com Humboldt, uma relação falhada, o amor a desvanecer-se, a desaparecer entre os dedos. Tudo aqui é negado à narradora, numa crueldade diferente da da primeira parte - pois, aí, as vítimas eram peças, a justiça era burocrática e não humana, mas aqui, o humano das relações interpessoais falha, despedaça-se.

Humboldt que não pode deitar-se tarde, chegar tarde, porque a narradora, em estado alerta, dorme com um martelo debaixo da almofada. Porque o trauma a deixou de sobreaviso. Momento irónico máximo em A Moral.

E, por isso, o livro assume um tom de luta constante, pelo irreparável que se tenta reparar com um martelo, pela relação que se deteriora. E a narradora, que se mantém forte.

Esta é já a segunda edição portuguesa (ambas as edições da Douda Correria têm capas diferentes; esta é a capa original). A capa da edição brasileira, vermelha, parece mais simples; porém, pelo que li, é uma capa que deixa tinta nas mãos de quem o folheia, sendo impossível ler sem sujar, sem interagir fisicamente, que é um conceito que desconhecia.

5/5

Podem comprar esta edição directamente à Douda Correria.

Comentários

  1. Não estou a tentar ser mazinha, mas já viste que se o texto fosse corrido, seria tipo "flash fiction" ou assim? Faz-me confusão que se pegue num texto, se divida em versos e se lhe chame poema. Não sou tão antiga que ache que os poemas tenham de rimar, mas para mim devem ter algum ritmo, alguma melodia, linguagem mais rica, mais lírica, mesmo quando o conteúdo é duro, como este. Até custa lê-lo em voz alta sem solavancos, porque a divisão parece totalmente aleatória. Isto é demasiado moderno para mim! :-)
    Paula

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    Respostas
    1. Compreendo perfeitamente! Eu enquanto pessoa com uma certa aversão a poesia, acabo por aceitar melhor estes seus derivados...
      Também o conteúdo, pesado, me fez sentido com o ritmo abrupto e desconfortável, acho!
      Mas percebo - quando leio textos corridos que não me fazem sintaticamente sentido, fico agoniada...

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