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The Awakening and Selected Stories of Kate Chopin

Um clássico feminista que aguardava na estante há mais anos do que tenho coragem de revelar.


Tratando-se de uma edição combinada, romance e contos, decidi começar a minha leitura de Kate Chopin pelos contos. Começo, assim, por falar dos contos, destacando alguns.

Estes contos são retratos de algumas das complexidades de ser mulher no Sul Norte-Americano no final do séc. XIX, incluindo as relações com os homens, como o amor romântico pode não correr da melhor maneira, ser incompreendido, não passar de um ideal. Aqui, os casamentos nunca são totalmente estáveis e podem mesmo ser vistos como uma prisão. Mães que se permitem a indulgência em si próprias, o egoísmo, mulheres que têm de confrontar o mundo, mulheres que acabam por descobrir algo sobre si mesmas.

Todas estas mulheres procuram a sua felicidade, no fundo - e esta procura acaba por se prender com o racismo, inferioridade, sofrimento, independência, realização pessoal.

Destaco três contos.

Desiree's Baby - um conto que toca, maioritariamente, em questões raciais, mas com vários toques de sexismo a permear as suas palavras. Desiree, abandonada à nascença, foi criada por pais adoptivos que a amaram. Casa com Armand, e o seu novo papel é o de parideira - e acaba por ser expulsa de casa do seu marido, quando o tom de pele do seu primeiro filho levanta suspeitas. Foge, filho no colo, sem nenhum dos seus pertences, com o peso de um complexo de inferioridade em cima. O twist final é doloroso, implicando uma ruptura tremenda com a família e com a figura materna.

"I thank the good God for having so arranged our lives that our dear Armand will never know that his mother, who adores him, belongs to the race that is cursed with the brand of slavery."

A Pair of Silk Stockings é possivelmente dos contos mais icónicos de Kate Chopin. À primeira vista, uma obra de materialismo vazio; aqui, acompanhamos Mrs. Sommers, que, empobrecida e tendo em sua posse $15, planeia, inicialmente, gastá-los nos seus filhos, que teve com um homem com quem nunca sonhara. Da riqueza para a maternidade, Mrs. Sommers acaba por descobrir a alegria de se preocupar consigo mesma, mas com um enorme sentimento de culpa agarrado. Não deixando os seus filhos passar fome, cede ao hedonismo, renegando a responsabilidade moral.

The Story of an Hour foi possivelmente o meu conto favorito. Muito curto, dá-nos uma hora na vida de Louise Mallard, uma mulher com alguns problemas cardíacos que recebe a notícia da morte do seu marido num acidente. Durante essa hora, Louise dá por si livre - não fica chocada, mesmo o seu choro inicial não é genuíno. Louise celebra a morte do seu marido - um marido que não nos é descrito como abusivo, como nada, na verdade, mas que, de alguma maneira, conseguia ser, ainda assim, o opressor. Moralmente, é um conto muito forte. Louise Mallard celebra a morte do seu marido - mas, é claro, não era suposto ser assim, e Louise não estava preparada (treinada) para viver com tamanha alegria.


E por falar em maridos não necessariamente maus - irei agora falar do romance, The Awakening. Este é um livro estranhamente e seriamente revolucionário, escrito no final do séc. XIX mas, ainda assim, capaz de explorar os sentimentos e sexualidade femininos mais directamente do que muitos livros actuais. Casamentos servis, maridos mais indiferentes que propriamente cruéis, maridos que "mantêm" mulheres para a gestão do lar e geração de herdeiros, amantes...

O casamento é, geralmente, mostrado de forma muito romantizada, bem como a maternidade. O amor materno deve ser ideal, ilimitado - e é também por isso que The Awakening acaba por ser tão moderno, porque questiona, ainda que indirectamente, este amor incondicional. Edna é casada, tem filhos, tudo graças às expectativas sociais do seu tempo. Casou-se para envergonhar o pai (casou-se com um homem católico) e os filhos foram um efeito secundário desse casamento.

Não é que Edna não goste dos seus filhos - passa dias com eles, preocupa-se. Mas Mr. Pontellier, o seu marido, rapidamente a admoesta pelo seu habitual neglect of the children. Ao início, quiçá este seja um marido que, não passando tempo suficiente com os filhos, quer apenas criticar a esposa; mas, posteriormente, em conversa com Mme Ratignolle, amiga, Edna revela:

"I would give up the unessential; I would give up my money, I would give up my life for my children; but I wouldn't give myself. I can't make it more clear; it's only something I am beginning to comprehend, which is revealing itself to me."

E é claro que mesmo esta sua limitação, enquanto mãe, vem do vazio do seu casamento, do vazio da sua vida. Edna não tem paixão pela sua vida, logo, não tem vontade de a viver, de a partilhar - mas, quando Robert aparece e altera o rumo da vida de Edna, ela "desperta" - e não tem vontade de ser melhor mãe, porque as crianças simbolizam o continuar presa ao seu casamento. O que acaba por a fazer parecer egoísta. Mas eu não peguei no livro em busca da maternidade perfeita...

Durante o seu "despertar", Edna começa a rebelar-se contra as normas sociais que o seu marido julga aceitáveis para as mulheres. Edna Pontellier é uma personagem real, com sentimentos, pensamentos e emoções fortes e reais. Mantém um casamento sem desejo, mas com riqueza e posição social (os quais Mr. Pontellier quer manter a todo o custo, mesmo quando confrontado com a vontade da mulher em o deixar). É quando Robert desaparece que Edna se apercebe do tamanho da sua paixão por ele, que decide mudar, ser mais ela própria, revelar-se. Deixa de receber visitas, relega as crianças à ama, começa a fazer simplesmente aquilo que a apraz, não obstante as opiniões do seu marido e dos seus amigos. Por fim, sai de casa, arranjando o seu próprio apartamento, que sustenta vendendo a sua arte.

Mr. Pontellier had been a rather courteous husband so long as he met a certain tacit submissiveness in his wife. But her new and unexpected line of conduct completely bewildered him. It shocked him. Then her absolute disregard for her duties as a wife angered him. When Mr. Pontellier became rude, Edna grew insolent. She had resolved never to take another step backward.

Apesar da força dos tons feministas, que geram alguma empatia para com a protagonista (especialmente quando Mr. Pontellier a vê apenas como uma posse, um objecto, algo que ele possui), Edna não deixa de ser algo egoísta. Robert, mais que um desejo consumado, acaba por ser apenas uma forma de libertar a sua mente de um casamento indiferente.

O livro torna-se mais interessante à luz da época em que foi escrito, nomeadamente pelo facto de as mulheres, então, não terem o mesmo direito à autonomia que têm hoje. Edna talvez não se descrevesse como infeliz - o casamento não lhe é conveniente, não tem grande alegria nas responsabilidades do dia-a-dia doméstico, mas, sem Robert, talvez não viesse a questionar a sua vida; talvez não "despertasse".

Edna nunca tivera a liberdade de fazer o que lhe interessava, estar com quem lhe interessava. Assim, ao olho moderno, parece "regredir", quando arranja um amante, quando tenta ter uma relação com Robert (que regressa), quando quase cria um escândalo pelos padrões da altura.

Mas não compreendi o final. Ao longo da obra, Edna luta para ser mais independente, seguindo os seus próprios desejos, saindo de casa, procurando ser livre de quaisquer constrangimentos que a sociedade lhe impunha. Haverá liberdade desses constrangimentos? Possivelmente não. Mas, quando Robert, apercebendo-se da incapacidade de poder ficar com Edna, porque a sociedade em que se movem nunca lhos permitiria, Edna faz algo que não coincide com as suas restantes acções. Parece mesmo que a sua felicidade dependeria de um homem... e fica complicado discernir se estivemos perante uma mulher forte, ou uma mulher com doença mental, ou meramente fraca. Não basta dizer que Edna Pontellier foi vítima da sua sociedade.

She turned her face seaward to gather in an impression of space and solitude, which the vast expanse of water, meeting and melting with the moonlit sky, conveyed to her excited fancy. As she swam she seemed to be reaching out for the unlimited in which to lose herself.

4/5

Podem comprar uma outra edição em inglês na wook ou na Bertrand; ou em português, só romance e sem contos, na wook ou na Bertrand


Comentários

  1. Quero mesmo ler The Awakening ainda este ano. E arranjar mais contos dela, porque são mesmo do género que me agrada, com um final impactante e personagens bem construídas em poucas páginas. Tenho o livro em segunda fila e já não me lembro de todos, mas estes que salientas são realmente fantásticos.
    Paula

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    1. Gostei bastante dos contos, mas alguns ressoaram mais do que outros :) O The Awakening também vale bastante a pena, embora eu tenha achado o final algo incongruente!

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  2. É um bocado vergonhoso ainda não ter lido o The Awakening, terá de ser ainda este ano!
    entretanto, deixaste-me curiosa com os contos. Esse da mulher que fica feliz com a morte do marido parece maravihoso.

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    1. Eu tinha, acima de tudo, vergonha do tempo que o livro esteve a ganhar pó na estante! Recomendo muito :) os contos devem estar no Project Gutenberg!

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  3. Gostei do post, gostava de ler o livro um dia! Fiquei curioso principalmente com o conto The Story of an Hour

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    1. O conto é magnífico, e se quiseres, podes ler online :p tem tipo três páginas!

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