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Um Beijo Dado Mais Tarde

Uma das leituras mais ansiadas - e mais estranhas.


Queria ler Llansol desde que a descobrira, há não muito tempo - na Feira do Livro de Poesia de 2018, muito por acaso. Ficou, então, a promessa (ainda por cumprir...) de visitar o Espaço Llansol, e uma enorme curiosidade acerca do trabalho da autora.

Confesso que fui cativada por este título, mais do que uma recomendação concreta ou alguma noção de ser um bom sítio para começar a conhecer a obra de Maria Gabriela Llansol. De facto, e como o posfácio me deu a entender, possivelmente este não era o melhor ponto de partida.

A título de referência, ficam as recomendações que o _marianomariano me deu, no Instagram, e que poderão ser melhores sítios para começar:

- O Livro das Comunidades
- Lisboaleipzig
- Casa de julho e agosto
- O começo de um livro é precioso (poesia)

Este livro parece ter algo de autobiográfico, sem se conseguir perceber exactamente o quê; a escrita e a narrativa são confusas, dispersas, quase encriptadas, crípticas. Não é uma leitura fácil, nesse sentido, e não é uma leitura rápida, sendo necessário deslindar alguns significados ou contextos.

Aqui, com a morte de uma tia, Assafora, dá-se o regresso a uma casa de infância, na Rua Domingos Sequeira: assim, surgem episódios de infância, episódios familiares, memórias ligadas a objectos. O tema principal parece ser a família; o pai, Filipe, a empregada, Maria Adélia, com quem o pai terá tido um caso, e Témia, a "rapariga que temia a impostura da língua", a narradora que tanto o é na primeira como na terceira pessoa, nascida do corte da língua de uma cabra, presa a um castanheiro.

À medida que a narradora vai esvaziando a casa - levando alguns móveis e objectos consigo, vendendo outros, doando outros -, vai narrando o espaço, os eventos do passado, mesmo antes de ter nascido (o irmão abortado). Central, além de Témia, é a Estátua da Leitura, uma figura onde Ana ensina Myriam a ler.

_Com voz mais baixa do que ler.
_Com a voz de escrever.

A casa surge em torno de Ana ensinando Myriam a ler, em episódios, tempos e quase sonhos, fantasmas do passado, no fundo. A narradora revê o pai, já falecido, revê Maria Adélia, em seis capítulos bizarros, cada um deles tendo início com um prólogo, com temas trágicos, que vão dar início à narrativa fragmentada, atípica.

Não há, aqui, início, meio, fim - é uma narrativa tudo menos convencional, difícil de penetrar, disfarçada no ininteligível. O texto tem vários itálicos, traços que parecem cortar o texto, espaços vazios, como se fossem pausas, intervalos mais fundos que a simples pontuação.

A falta de lógica imediata no texto traz-lhe muita beleza, embora seja, ao mesmo tempo, uma leitura algo perturbadora.

Lá onde estás, deve ser assim.
Nunca olhes o bordos de um texto. Tens que começar numa palavra. Numa palavra qualquer se conta. Mas, no ponto-voraz, surgem fugazes as imagens. Também lhes chamo figuras. Não ligues excessivamente ao sentido. A maior parte das vezes, é impostura da língua. Vou, finalmente, soletrar-te as imagens deste texto, antes que meus olhos se fatiguem. O milionésimo sentido da voz, "tiro o lápis da mão", o gesto de partir a luz, o pensamento de uma criança, cópias da noite, passeio nocturno, "era um dia verde", o afecto do negro, sob o lenço da noite. O indizível é feito de mim mesma, Gabi, agarrada ao silêncio que elas representam.

Não é um livro que fique numa zona de conforto - e não traz conforto, nesse sentido. As frases que desafiam a sintaxe, o texto que desafia a concentração do leitor, sem trazer um fim, uma resolução, tornando o texto (mais que a narrativa, imprevisível, desfeita, desordenada), poético, mais do que estranho, quase uma obra de arte.

“havia um segredo”; era a trepadeira que envolvia o
lugar ______________ tudo tão simples:
A é serva; quando engravida de B, o filho da casa, só
pode cantar o amor de boca fechada; alguns anos mais
tarde, o filho da casa contrai matrimónio, e dessa
união tem uma filha ______________; o primeiro filho – o
da serva – foi abortado; e “sobre esta casa pairou um
mistério, um não-dito, que alisou, numa pequena pedra,
uma irreprimível vontade de dizer. Deste mistério, e
no fim de um trabalho executado a som e a cinzel, fez-se
a rapariga que temia a impostura da língua e que queria”,
através da palavra,
fazer ressoar fortemente,
o seu irmão morto.

O texto é delicado, como um beijo, composto de pensamentos quebrados, fragmentados, imagens incompletas, arruinadas - uma não nostalgia de uma infância, os segredos de uma família, as personagens (e a própria narradora) que se desdobram e que, tal como a escrita, se reorganizam.

Leitura difícil e, inicialmente, pouco cativante. Não julgo quem dela desista. Mas vale a pena.

4/5

Podem comprar esta edição na wook ou na Bertrand

Comentários

  1. Tenho ouvido elogios muito altos sobre a sua escrita e pensamentos, já a folheei numa livraria numa obra com textos soltos, li excertos e achei interessantes, mesmo assim não tive coragem de comprar qualquer livro dela.

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    1. Llansol é, de facto, uma autora cuja leitura carece de coragem prévia. Comprei pela muita curiosidade, sem ter lido ou folheado nada dela antes. Não sabia ao que ia - mas gostei muito.

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  2. E eu desisti para aí na segunda página.
    É curioso: estou a ler "Os Passos em Volta" do Herberto Helder, e muitas frases, textos completos até, deixam-me à nora, mas não me repelem, muito pelo contrário, fascinam-me. Já com a Llansol parecia que alguém tinha enlouquecido, ou eu ou ela. Talvez eu não seja uma llansoliana!

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    1. Não julgo, porque fiquei chocada no primeiro parágrafo :) não sabia mesmo ao que ia!
      Nunca li Herberto Helder, mas Os Passos estão na minha (enorme) wishlist; acho que essa loucura que referes, da escrita de Llansol, acabou por me cativar, mas percebo perfeitamente como possa ter o efeito contrário!
      Ainda assim, não estou 100% convencida - tentarei outro(s), mais tarde!

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  3. 'a narradora que tanto o é na primeira como na terceira pessoa, nascida do corte da língua de uma cabra, presa a um castanheiro.' say whaat?
    Voz de escrever é uma dica no entanto
    Eu tinha vontade de ler Llansol mas admito que todo este post me deixou de pé atrás :$ eu gostei do post, simplesmente fiquei com a sensação que não é leitura para mim, demasiado random e tenho tantos livros que quero ler, talvez dê uma oportunidade a outra obra dela!

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    1. Não é um livro nada linear e, como tal, nada fácil! Muito random, sim, e não muito directa, gostei da experiência, mas é estranha! Quero ler mais dela :p

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