Adoro literatura francesa.
(Tenho uma relação amor-ódio no que respeita a ler em francês)
Thérèse Raquin foi a minha estreia com Émile Zola, por ter demasiado receio com a saga de Les Rougon-Macquart: quero imenso ler o livro dos mineiros, mas a linguagem mineira deve ser horrível. Também quero imenso ler o da prostituta, e o dos supermercados... respectivamente, os livros 13, 9 e 11 da saga, que tem uns modestos 20 livros, mas consta que se devem ler numa ordem diferente da ordem de publicação, pelo que seriam o 16, 17 e 8. E aparentemente, devo ler primeiro La Fortune des Rougon.
Portanto, comecei com Thérèse, anterior à gigantesca obra Les Rougon-Macquart. É um livro repleto de sentimentos fortes, violência, crime e tragédia. Thérèse nasceu no Norte de África, filha de uma mulher nativa e de um soldado francês. Com a morte da mulher, o pai de Thérèse decide levar a criança à sua irmã, em Vernon, cidade à qual já tive oportunidade de ir (ver fotos), para ser criada pela sua tia viúva, Mme Raquin, juntamente com o seu primo adoentado, Camille. Nunca mais se ouve falar do pai de Thérèse, que morrerá em África anos mais tarde.
Mme Raquin ama Thérèse como se fosse sua filha - tanto que planeia casá-la com Camille, quando ambos forem crescidos. Thérèse sente um certo asco pelo primo, mas não se pronuncia, não causa problemas, guarda para sim os seus sentimentos. Gosta muito de ver o Sena passar. Thérèse e Camille casam-se, não por terem sentimentos um pelo outro, mas porque a vida não tem alternativas para lhes oferecer.
Lorsque l'avenir est sans espoir, le présent prend une amertume ignoble.
Um dia, Mme Raquin decide vender a sua loja em Vernon e mudar-se para Paris, abrindo uma loja numa passagem da Pont Neuf (ver fotos, também), um canto escuro e desagradável, uma loja para vender tarecos a pobres da classe trabalhadora. Basicamente, um retrato da vida nas zonas menos afluentes de Paris no final do século XIX.
Quando Camille decide sair da asa protectora da sua mãe, a vida da família começa a mudar: no trabalho, Camille reencontra um antigo amigo de infância, Laurent, que começa, tal como outros conterrâneos, a frequentar a casa dos Raquin nas quintas à noite. Laurent representa tudo aquilo que Camille não é, forte, alto, intenso, e Thérèse apercebe-se disto. Pensa que aquele sim, é um homem a sério. Rapidamente, tornam-se amantes.
La nature et les circonstances semblaient avoir fait cette femme pour cet homme, et les avoir poussés l'un vers l'autre.
A relação intensifica, e começam a temer ser apanhados. Laurent começa a arriscar o emprego, faltando para se encontrar com Thérèse. E Laurent sente que o cenário é perfeito: o conforto familiar de Mme Raquin, uma mulher que até é bem parecida, o dinheiro da loja... seria perfeito, se Camille desaparecesse. Para sempre.
"Ah! si ton mari mourait..."
"Si mon mari mourait...", répéta lentement Thérèse.
"Nous nous marierions ensemble, nous ne craindrions plus rien, nous jouirions largement de nos amours... Quelle bonne et douce vie!"
É um acto executado de forma brilhante. E, caso pareça o final, advirto: o homicídio dá-se na parte inicial do livro. O que me levou imediatamente a questionar o que viria depois.
Estava preparada para uma análise do homicídio, das suas motivações sexuais, não estava preparada para a selvajaria que se sucedeu. É uma história do que as pessoas podem fazer para alcançar aquilo que desejam, e de como os seus desejos as podem destruir. De como se pode ir longe demais. Uma história sobre paixão, desespero, vingança e culpa. O final do livro chega a um nível Grand Guignol.
É uma narrativa sem esperança, negra, que mostra a prisão em que a mente se pode tornar, mas o horror nunca é gratuito, é tudo ponderado e propositado. O recanto escuro onde Thérèse e a sua família moravam e trabalhavam, o ambiente claustrofóbico tornou-se incrivelmente real, apoiando os papéis das três personagens principais (e do gato).
Madame Bovary é uma clara influência desta obra, sendo que Zola leva o aborrecimento da mulher ao extremo, indo Thérèse a lugares onde Madame Bovary nunca chegou. Outro ponto quiçá interessante será a origem étnica de Thérèse: tal como a origem caribenha de Bertha Mason é utilizada para "justificar" a sua loucura (algo excelentemente explorado por Jean Rhys), será a origem africana de Thérèse também origem da sua leviandade, da sua sensualidade, da sua sexualidade mal resolvida?
Sim, criminosamente não disponível em Portugal, talvez tenha sido traduzido, só que não existem edições atuais à venda, infelizmente todas as obras de Zola que queria ler não encontrei nem uma e recuso-me a ler as que preteri, pelo que nunca li Zola.
ResponderEliminarSim, creio que existiram em tempos traduções, sob o nome "Emílio Zola"... mas agora, nada, e é uma pena. Há muitos autores que por cá estão infelizmente (e criminosamente) esquecidos. Eis um deles.
EliminarEu li o Germinal há muitos anos, quando ainda conseguia ler edições Europa-América de bolso. É a coisa mais miserável e aflitiva que já me passou pela vista!
ResponderEliminarEste que leste deve ser tão bom! Também o tenho e ao Nana em português, numas edições antigas de capa dura. Não lendo em francês, é a solução possível.
Paula
"quando ainda conseguia ler edições Europa-América", como compreendo esta frase! Uma vez peguei num Inferno do Dante, que havia saído com um DN... estava em prosa.
EliminarEste também é miserável e aflitivo. Adorei! Espero que essas edições antigas estejam minimamente à altura, adorava saber a tua opinião :) O Germinal e o Nana são precisamente dois dos que mencionei no post.
Adoro o não só a literatura francesa, mas o cinema...tudo! E a cidade ....! Saudades! Este nunca li, mas um dia será a vez dele :)
ResponderEliminarBeijinho
Tenho imensas saudades de Paris e um desejo enorme de lá voltar. Estes livros ainda acrescem mais a esse sentimento...
EliminarGostei bastante - um estudo interessante sobre o ser humano. Grande beijinho, Isa!