Já muito por aqui se falou da vertente contista de Maria Judite de Carvalho.
Ora vejam:
Assim, falemos daquilo que mais se distingue neste quarto volume da obra completa da autora: é composto por dois conjuntos de crónicas e um conjunto de contos. E, precisamente por ser diferente, focarei nas crónicas.
Retratos de época, em parte, mas, em muito, absolutamente intemporais. Maria Judite de Carvalho revela, nas suas crónicas, a mesma astúcia e capacidade de observação que são tão marcantes nos seus contos. São retratos da cidade e da sociedade de Lisboa, desta nossa cidade, grande e confusa cabeça do corpo frágil que é Portugal, nos finais dos anos 1960 e inícios de 1970, publicados inicialmente no Diário de Lisboa.
Todo o tipo de situações e objectos servem de mote para estas crónicas: pedintes na zona do Chiado, classificados do jornal, listas telefónicas, janelas, electrodomésticos, automóveis, gravadores. Acima de tudo, pessoas. Por retratarem a importância de determinadas coisas e objectos, são extremamente localizados no tempo (em plena ditadura, seguida de Primavera Marcelista); mas os sentimentos e emoções evocados acabam por ser intemporais.
Não vale a pena, aqui, alargar-me muito; fiquem com alguns excertos.
Vender selos, por exemplo. Fala-se mal de algumas empregadas dos correios, que entregam os selos enquanto conversam, que não estão ali enquanto os seus dedos, independentes, fazem o que há a fazer. Mas nós, lá? Mas nós uma vida inteira a vender três selos de cinco tostões, e dois de um escudo, e sete de três tostões e por aí fora, um dia, um mês, um ano, uma vida, já pensaram?
Às vezes, vendo-a trabalhar, ouvindo-a falar, penso que talvez de futuro as pessoas possam ser aquilo que valem e não aquilo que vale o cofre ou o ordenado dos pais. E que um homem, seja qual for o seu valor pessoal, não seja sempre mais importante do que uma mulher.
Aqui, nesta cidade, noutras maiores, claro, as estrelas foram apagadas e substituídas, e, quando avistamos um ponto luminoso, nem sequer é o planeta Vénus, mas a lanterna que fica acesa toda a noite no alto de um prédio em construção.
Saudades de ler Maria Judite
ResponderEliminarEstá na estante à tua disposição :p
EliminarDestes três volumes aqui incluídos só tenho Homem no Arame, no qual me tocaram logo os dois primeiros textos. As crónicas achei um pouco datadas, o que é normal e expectável, claro.
ResponderEliminarPaula
É inevitável que fiquem datadas, mais não seja porque a sociedade mudou muito nos últimos 50 anos, mas achei alguns sentimentos lá expressados intemporais. Um retrato de uma época, mas uma leitura que vale muito a pena!
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