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Flores ao Telefone + Os Idólatras + Tempo de Mercês

O terceiro volume da Obra Completa de Maria Judite de Carvalho é o primeiro do qual eu não tinha ainda lido nada.


Assim, parti com total desconhecimento para os três conjuntos de contos aqui apresentados (o volume IV está prestes a sair, e é outro do qual não li nada até agora - mas já sei que são crónicas!), tendo apenas como ponto de partida as expectativas extremamente elevadas, dada a qualidade a que a autora já me habituara.

Mais uma vez, estas expectativas não saíram goradas; houve, no entanto, uma enorme surpresa: Os Idólatras. Mas já lá chegarei.

O primeiro conjunto, de 14 contos, inicia, precisamente, com Flores ao telefone, um conto muito curto (sete páginas apenas) sobre uma mulher, Flores, que procura ao telefone três pessoas: uma colega de trabalho, o ex-marido e a suposta melhor amiga. O telefone, que deveria aproximar  e tornar o contacto mais fácil, torna-se aqui no símbolo do distanciamento, da comunicação sem significado. E as pessoas que Flores contacta focam-se nas suas próprias situações e circunstâncias, sem compreender a urgência dela, urgência que seria mais aparente com um contacto directo, pessoal.

Vemos, novamente, neste conjunto de contos, um conjunto de pessoas que estão presas às suas situações, à sua repressão, à sua solidão e falta de esperança, realização ou afecto. Gostei especialmente do conto final, A que fora querida.

Queres casar com ela? Sentes-te responsável por ela? É amor o que sentes? Ou é simplesmente ela que gosta de ti? Ou nem isso, ela que quer casar contigo ou até simplesmente casar? Eram tudo perguntas que não lhe fez porque não valia a pena fazê-las, conhecia de antemão as respostas que ele lhe daria. Luci tinha, de resto, todo o ar de uma rapariga de boas famílias - do que é hábito considerar-se boas famílias -, cujo objetivo na vida era arranjar um marido, uma vida organizada, clara, sem meios-tons. Uma rapariga que não desejava só um casamento mas decerto uma cerimonia de branco e com música adequada. Uma entrada sensacional na vida, à vista de todo o mundo. Um sacrifício público, enfim.

Os treze contos de Os Idólatras foram, como mencionei há pouco, uma surpresa, pelo seu teor fantástico/de ficção científica, que não conhecia na autora, e que não esperava. Muitos dos contos passam-se no futuro, em futuros imaginados, mais introspectivos ou introspectivos que propriamente tecnológicos.

O primeiro conto, A floresta em sua casa, despertou-me a atenção porque senti que já o teria lido algures (mas onde?); passa-se num tempo em que a extinção de animais, como leões ou elefantes, é já uma realidade, e onde, por esse motivo, quadros na herança estilística de Henri Rousseau cresciam na popularidade. Numa casa, está pendurado um quadro com algumas corças, um macaco e um leão. Os dois irmãos do casal que comprara a obra olham atentamente para o quadro.

As crianças ouviram dizer que no jornal viera a notícia da morte, no jardim de Choa, junto ao Nilo Azul, do último leão do mundo. E isso pareceu-lhes apaixonante, era como se estivessem, também eles, à beira de um precipício e lá em baixo fosse a outra era, aquela em que não haveria leões.
"Nós temos um leão", disse o mais pequeno quando estavam deitados e de luz apagada.
"É de pano pintado."
"O resto é de pano pintado. Ele não."
"És parvo."
"Os olhos dele são a sério. É um leão. E deve ter fome." Sentou-se na cama. "O que comerá um leão?"

E o irmão mais velho, Gilles, começa a aperceber-se, aflito, que os animais, um a um, vão desaparecendo do quadro - vítimas, talvez, da fome do leão. E depois desaparece o irmão, e depois a mãe. E a culpa não é atribuída ao leão... E anos mais tarde, quando Gilles regressa à casa da sua infância, vê, no quadro, todos os animais que lá constavam do início.

Gosto de Rousseau - já vi uma exposição da sua obra, como mencionei aqui, e é "fácil" imaginar este conto, os animais escondidos a desaparecer (ou a encobrir, na imaginação de uma criança, o crime real).

Confesso que esta colectânea me prendeu menos a atenção que as demais. O teor mais fantástico - igualmente humano, mas menos realista, menos real - não surtiu em mim o efeito de contos anteriores. Distraí-me mais, embora muitos dos contos sejam de uma enorme beleza. Maria Judite de Carvalho mostra-nos um mundo e uma sociedade mecanizados, frios, funcionais, numa projecção de um mundo realista para um mundo futuro, moderno, de fantasia, em que as preocupações dos personagens, aparentemente "solucionadas" por vidas eternas, prolongamentos da vida, curas para tudo, se centram naquilo que não conseguem, afinal, resolver: encontrar um propósito para as suas vidas, que está para além do seu controlo.

O último conjunto, Tempo de Mercês, tem como conto inicial, e mais longo, o que dá título à obra. Aqui, acompanhamos um homem, Mateus, que regressa à sua vila natal para vender a casa dos seus pais, onde vivera os primeiros anos da sua vida, uma casa que lhe era querida, mas que tem de vender para realizar o sonho de uma mulher de quem nem gosta particularmente. Nesta viagem, recupera memórias de infância: a mãe, com quem abandonara a vila, o pai, que fugira para a África do Sul, o melhor amigo de infância Jorge, e a mãe deste, Mercês, num claro jogo de palavras com o nome desta mulher.

E Mateus fora vender a casa dos pais, não para tentar salvar Alberta - fá-lo-ia, de resto, para a salvar, se tal fosse possível? - mas para ela ir ver as ruínas da Acrópole. Verdade seja que ela não queria que ele a vendesse. Não queria também morrer sem ter visto as ruínas. Não queria ficar ali, naquela casa onde sempre vivera (e se sentira talvez feliz), à espera do fim.

Mais uma vez, Maria Judite de Carvalho presenteia o leitor com relatos de solidão, desespero, depressão, incapacidade de encaixar no mundo. A maioria das personagens são femininas, crianças ou idosos (ou pessoas precocemente envelhecidas, recordemos Dora Rosário); e mesmo quando a fantasia e a ficção científica entram nos contos, entram de modo superficial, porque os temas predominantes continuam a ser aqueles, presentes na sua obra.

4,5/5

Podem comprar esta edição aqui.

Comentários

  1. Não me recordo de ouvir o nome dela, mas curiosamente vi que foi autora de Tanta gente Mariana de que já ouvi falar. Fiquei curioso

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    1. Já há quase quatro anos que ando a ler e recomendar esta autora - tendo começado, precisamente, por Tanta Gente, Mariana. Recomendo muito, Carlos - nomeadamente o primeiro volume desta colecção, que tem precisamente essa obra.

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  2. Também estou boquiaberta: MJC a escrever ficção científica?! Ainda não tenho este 3º volume, mas quando o tiver, começo logo por esta colectânea.
    Paula

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    1. Confirmo e partilho do espanto! O primeiro conto é o do quadro, que ali citei, e foi o mais realista da colectânea :) merece muito a pena, este volume. E o quarto agora a sair do forno!

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    2. Já vi, já vi, dois volumes de crónicas e um de contos, do qual só li o Homem no Arame, por isso, vou querer trocar ideias contigo quando lhe pegares.
      Quando ler esse conto, vou sem dúvida passar os olhos pelo Rosseau. Além de gostar dele (como pode ser tão sublime e tão castiço?), acho uma experiência magnífica ver os quadros para que os livros apontam, como fiz com o Nervo Ótico (Óptico!).
      Paula

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    3. Sim :) li já alguns textos de "O Homem no Arame", mas fora isso este quarto volume é outro do qual também ainda não li nada!
      Eu vi esta exposição de Paraíso Perdido em Dezembro de 2016: https://www.ngprague.cz/en/exposition-detail/henri-rousseau/ e gostei muito; e, claro, o Snake Charmer do d'Orsay :) é TÃO fácil ler aquele conto e pensar neste leão de olhos vivos: https://www.comunidadeculturaearte.com/wp-content/uploads/2017/03/henri_rousseau_le_reve_1910_detail.jpg
      (O "Ótico" também me faz uma impressão...)

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