Aqui está um livro que, à primeira vista, não teria nada de polémico.
Mas oh, se tem.
Muitos de nós terão profunda nostalgia com o pequeno elefante com o fato verde e a coroa de rei, que conheceremos talvez melhor dos desenhos animados do que dos livros que Jean de Brunhoff autorou na década de 1930. Foi movida por essa nostalgia que o adquiri naquela que é, na minha opinião, a melhor livraria de Paris, a L'Écume des Pages, embora já ciente do que se diz sobre o mesmo.
Há vários volumes das histórias de Babar, sendo este o primeiro. Jean de Brunhoff escreveu um total de sete e, a esta colecção, o seu filho Laurent de Brunhoff acrescentou inúmeros. Adianto desde já que gostaria de um dia adquirir e ler os dois volumes que se seguem a este: Le Voyage de Babar (que relata a viagem para a qual ele parte no final deste volume) e Le Roi Babar.
O livro é curto, com belas imagens acompanhadas de poucas palavras. O texto está numa bonita e simples caligrafia. Babar nasce e, ainda muito novo, é confrontado com a desgraça quando, num passeio com a mãe, se deparam com um caçador.
(já agora - as imagens deste post são composições das páginas, disponíveis online, e não digitalizações das mesmas)
(já agora - as imagens deste post são composições das páginas, disponíveis online, e não digitalizações das mesmas)
Como Bambi, Simba e Littlefoot em situações análogas, Babar foge. Corre em direcção ao desconhecido e vai parar a uma cidade com nuances francesas, onde uma velha senhora, com especial predilecção por elefantes, o vê desamparado e o decide ajudar. Babar compra elegantes roupas, incluindo um elegante e icónico fato verde, diverte-se nos elevadores e come pâtisseries várias. Tem tutores e aulas, a senhora compra-lhe um carro.
Babar vai sentindo falta da mãe. As suas saudades da floresta crescem, e tornam-se insuportáveis quando os seus primos, Arthur e Céleste, aparecem na cidade. Os primos aparecem, tal como Babar aparecera antes, nus - e Babar arranja-lhes roupas. Decide, depois, regressar com eles, no seu carro. Havendo uma crise dinástica, Babar acaba por ser eleito rei.
E é por tudo isto que o livro é estranho e controverso. É uma espécie de fantasia colonial francesa - Babar, após perder a mãe às mãos dos caçadores (brancos), vai para a cidade, onde "troca" a mãe pela velha senhora, tornando-se filho da metrópole, comendo bolos, vestindo caro (tapando a sua pele de elefante), beneficiando da educação civilizada.
Regressa a casa totalmente afrancesado, educado... preparado para liderar o seu povo rumo à civilização. E, por todas as suas adquiridas virtudes, é eleito. Por ser "avançado", por ter conhecimentos.
Seria esta uma intenção do autor, ou apenas subconsciente? Será um livro inocente sobre elefantes, sobre como um pequeno elefante com um terrível início de vida deu a volta por cima, ou será um livro sobre política, guerra, vingança e colonização?
É um pouco confuso. Mas, e apesar de reconhecer todos estes problemas - não quero saber. Acredito na leitura crítica, acredito no que torna este livro problemático, mas também acredito na força destas ilustrações icónicas e em conseguir ler o texto sem as implicações e conotações que lhe possam estar subjacentes. O Simba também foi adoptado por um suricata e um javali, aprendeu novas filosofias de vida e voltou para ser rei.
Eu sei que não é a mesma coisa, mas não consigo evitar.
É bom sinal percebermos os problemas de um livro, mas que isso não nos cegue. Adorava Enid Blyton e li o Noddy aos meus filhos e fiquei para morrer quando comecei a ouvir que ela era racista. Se voltava atrás? Claro que não, só tenho boas memórias. Se estivermos sempre a dissecar tudo, tiramos a piada às coisas, e o Babar é amoroso, sobretudo nessas ilustrações.
ResponderEliminarPaula
Sim, acho que há mesmo que saber ler o problemático - mas entender também aquilo que é ultrapassável. Nunca li o Mein Kampf, mas acredito que não dê para passar ao lado de muita coisa; aqui, apesar do subtexto colonial tenebroso, temos uma história de superação de um elefante amoroso. Pronto.
EliminarDa Enyd só li Os Cinco. Qual o teor de racismo no Noddy?
Não era no Noddy, mas noutras histórias que escreveu. Foi acusada de racismo, xenofobia e sexismo, o que não compreendo, até porque ela criou uma personagem pouco feminina nos Cinco, com que muitas raparigas se puderam identificar.
EliminarPaula
A Zé! O que de mais bizarro tirei d'Os Cinco era o facto de eles passarem os dias a comer sandes de alface. Um amigo meu há uns anos releu alguns livros, e deixou um comentário com a seguinte citação no meu Goodreads:
Eliminar"Os dois rapazes correram pela relva, em pijama. Júlio foi direito a uma coisa dura, quente e sólida. Deu um grito. David acendeu a sua lanterna e começou a rir às gargalhadas."
(era um cavalo)
Eh eh! Lembro-me mais da sensação de os ler do que propriamente das histórias. Foi o meu primeiro contacto com livros passados em Inglaterra, juntamente com as histórias dela nos colégios, e aquilo era tudo fascinante e misterioso.
EliminarPaula
Também me lembro mais de os ler, que do conteúdo propriamente dito. Grandes aventuras!
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