Este foi o meu segundo encontro com a escrita deste autor, o primeiro em formato livro.
Ora, o primeiro encontro foi com este texto de opinião:
Autoficção e o assassinato do romance.
Sejamos claros: «A Resistência» de Julián Fuks não é um romance. Se tivermos em conta as suas dimensões, seria, no máximo uma novela (210 páginas, das quais quase metade estão em branco, em «cortes» entre os 42 capítulos); no entanto, a diferença entre novela e romance não é relevante para a minha afirmação. O que importa, isso sim, é a destruição do romance. Ora, não falamos de ciências exatas, mas um romance pressupõe - independentemente da sua estrutura, que pode ser elíptica, entrecortada, etc. - um acordo tácito e subconsciente entre o leitor e o autor: o leitor sabe que está perante uma obra ficcional e suspende, num ato muito curioso, a noção de realidade imediata; por outro lado, a responsabilidade está toda do lado do autor, que, ao escrever um romance, deve fazê-lo de modo a que, no contexto daquela histórias e das suas personagens, leve o leitor a interessar-se (e com isto não falo de uma das aberrações da leitura atual - a da necessidade de «empatia» com as personagens) e a tomar a obra como um todo (gostando mais ou menos dela). No entanto, neste livro tal não acontece. Fuks limita-se a reunir divagações e questões pessoais, partindo da história da sua família, e caindo no maior pecado do escritor - não, não é a treta da verosimilhança -: o de escrever para outrem algo que só ao próprio interessa. Fuks utiliza, de facto, a língua portuguesa com alguma desenvoltura, conquanto a tendência hipsterizada para a metáfora rasca que pretende simular um pensamento profundo sem nada dizer, muito em voga em Portugal, por exemplo, mas não cria um objeto de leitura apelativo, não cria um romance: cola, com cuspo, pequenos ensaios sobre um tema pessoal que, nas mãos de um bom romancista, poderia até originar um belo livro. O resultado é um tédio imenso.
Por tudo isto, continuo a não entender a atribuição de prémios literários em Portugal e em língua portuguesa. Quer dizer, entender entendo, porém, não deixa de ser triste.
Primeira ressalva: nunca li a obra de Julian Fúks. Há quem possa dizer, acerca da opinião acima citada, que "quem fala assim não é gago"; eu acho que quem fala (escreve) assim, demonstra uma enorme falta de respeito pelo próximo...
Mas adiante.
A Noiva do Tradutor é, segundo entendo, o primeiro romance de João Reis. Vi opiniões que o têm como um belíssimo tratado de humor e misantropia, o que poderia ir totalmente de encontro ao meu estado de espírito do momento (vejam o meu post sobre a experiência Feira do Livro de Lisboa 2021); no entanto, não encontrei nenhum dos dois. Duas pessoas nunca lêem o mesmo livro, não é? O que encontrei foi um narrador que descreve, na primeira pessoa, eventos do dia em que a sua amada, Helena, partiu num navio, e o dia que se segue. E o que ele narra passa por sentimentos vários de repulsa, repugnância e asco, destilando ódio para com tudo com o que se depara (com repetitiva utilização de palavras como repugnante, podre, lodo e sulfuroso/enxofre, adjectivando constantemente pessoas como porcas, gordas, animais, patéticas, depravadas, etc). Rapidamente percebemos que o descrito não se passa numa época contemporânea, mas num passado indefinido em que as comunicações eram mais lentas, as tecnologias outras (pela utilização de navios, velas...) e, segundo a sinopse, o objectivo é mostrar que, mudados os tempos, "pouco mudou".
O narrador é o dito tradutor, e vive nalguma pobreza, num quarto arrendado, partilhando casa com pessoas que julga suas inferiores. Sente-se incapaz de fazer algo que não traduzir, actividade para a qual sente vocação, e muitos lhe devem dinheiro por trabalhos passados; é uma pessoa que se queixa de tudo e nada faz para alterar a sua situação. Também grita kartofler aleatoriamente, a pessoas várias, na cara delas, por ser uma palavra estrangeira de cujo significado não se recorda e que lhe está na cabeça.
Uma curiosidade é que João Reis nomeia Knut Hamsun como uma das suas referências, e lembrei-me de Hunger durante esta leitura, dado tratar-se de um livro que toca vários pontos em comum; na obra de Knut Hamsun, temos um jovem escritor na pobreza (daí a fome titular, a passo que o tradutor jejua por iniciativa própria e por nojo da comida/das pessoas com quem coabita), que sonha com um tecto sob o qual dormir (o tradutor tem um tecto, que despreza, mas sonha com uma casa em particular), é obcecado com uma mulher (em Hunger, a mulher basicamente acha o escritor louco; aqui, foi para outro país), é demasiado orgulhoso para aceitar caridade ou algo que o alivie, acha-se demasiado bom para outro tipo de trabalho, demonstra laivos de loucura. No entanto, o escritor de Hamsun mantém-se algo positivo, apesar da sua atitude geral, e Hunger é um livro infinitamente melhor. Será que era suposto A Noiva do Tradutor ser uma paródia?
(entretanto, comentando este livro com uma pessoa, recordei que, aquando da leitura do Hunger, o protagonista me lembrara Raskolnikov. Em A Noiva do Tradutor há um acidente, provocado indirectamente pelo tradutor, que coloca a sua senhoria numa situação de saúde crítica. Será?!)
O estilo creio que seja uma tentativa de stream of consciousness mas, na minha leitura, pareceu-me apenas uma amálgama de pequenas frases coladas por vírgulas (não por cuspo), descrevendo tanto pensamentos quanto acontecimentos e acções ou gestos; não sou a maior fã de stream of consciousness, é certo, até porque me parece um estilo muito difícil de fazer funcionar (Faulkner funciona melhor para mim).
Ironicamente, o resultado é um tédio imenso - não levou esta leitora a interessar-se, e, entre tanto ódio e mesquinhez, não é um objecto de leitura apelativo. Knut Hamsun - e, valendo o que vale, Dostoevsky - construíram narrativas psicologicamente densas e relevantes com os seus personagens misantropos; não o senti neste livro.
O grande factor redentor, aqui, é ser uma obra curta, de cerca de 100 páginas (das quais grande parte está em branco, em "cortes" entre os capítulos). Não consegui ver o humor no "desabafo" exagerado, repetitivo (em palavras várias, temáticas e leitmotifs desinteressantes), de irracionalidade infantil, que acabou por perder rapidamente qualquer humor que pudesse, inicialmente, ter.
Numa última nota, batatas é bastante semelhante em dinamarquês e russo (kartoshka).
2/5 podem fazer unfollow à vontade, sei que são um autor e um livro muito queridos
Podem comprar uma outra edição, mais recente, na wook ou na Bertrand.
Eu faço-te já um duplo follow! Esse exacto livro já esteve na minha casa também. :-)
ResponderEliminarLarguei esse do Fuks, porque achei uma seca, e também dei 2* à Noiva, por isso, sou imparcial no meu comentário, creio. Para o bem e para o mal, o João Reis é menos corporativista dos escritores: com poucas excepções, malha em todos a torto e a direito, sobretudo se forem portugueses, por isso, essa opinião não me surpreende nada. Eu não achei graça nenhuma a este livro, não vi o seu propósito, ainda que perceba muito bem a luta do tradutor, e não fiquei com vontade de ler mais do autor.
Paula
olha que bonito termos partilhado este livrito :)
Eliminarreitero, nunca li o do Fuks e acredito que possa ser uma seca desgraçada; agora, acho que há várias maneiras de colocar essa opinião; da mesma maneira, e numa analogia directa, posso não apreciar o trabalho dos meus colegas de trabalho e não vou dizer que eles o andam a colar com cuspo. mas cada um sabe as pontes que quer queimar...
acredito piamente na luta do tradutor, que se aplicará, de uma maneira ou de outra, a qualquer trabalhador independente. agora, este livro (cujo propósito também não encontrei) li como um chorrilho de queixume...
Bárbara, como és uma bloguer discreta, não pensei que viesses a ter a torcida do João Reis à perna, mas a verdade é que ela existe e leva tudo muito a peito. A escritora Célia Correia Loureiro cometeu a ousadia de não gostar de um livro dele e teve um tipo a fazer-lhe todo um mansplaning em inúmeros comentários, basicamente a insultar-lhe a inteligência, a cultura e até mesmo a própria escrita, até o Reis em pessoa ter de vir pôr o açaime à fera. Boa sorte com os groupies! Ou alguém disfarçado disso. :D
EliminarPaula
Paula, eu pelos vistos não sou das massas porque não costumo ler os livros das ditas... E parece que muito bem, que depois dá nisto :D
EliminarInfelizmente, e não tendo presenciado (nem saber onde encontrar) esse bonito momento do melhor que a internet tem para nos ofertar, já conhecia o fenómeno. Ah, pois é! Que as groupies vêm em diversas formas e feitios e não são só aquelas meninas que vão para a fila da frente dos concertos do Tony Carreira a gritar "Faz-me um filho"! :)
Não concordo com sua resenha, mas creio que levanta algumas questões importantes, não me leve a mal. Primeira: um autor não pode criticar livros por ser autor? Isso é prática comum em todo mundo. O autor não é também leitor? Não tem tanto direito quanto você de criticar ou amar um livro? Creio que aí em Portugal tem muito esse mimimi de criticar. Esse é um ponto. Segundo: sua resenha é sobre o livro ou sobre a postura do autor? Parece partir de antemão com vontade de não gostar do autor. Terceiro: você critica todos autores que têm "má" postura? Por exemplo, seu compatriota Lobo Antunes é uma pessoa hedionda, e todos o amam. Quarto: me parece falacioso dizer que João Reis tem essa postura; li tanto seu Noiva do Tradutor edição DBA, quanto o livro de Fuks, gosto de ambos, mas não vejo como o autor é assim tão mau em críticas. Aliás, o sigo faz tempo e conheço muitos bons livros que ele menciona e partilha, é muito mais frequente elogiar livros do que os criticar (não que isso tivesse problema, mas você entende onde quero chegar).
ResponderEliminarQuanto à recensão em si, é uma opinião e uma leitura válida como outras. Mas não entendo que um livro de ficção tenha de ter "um propósito". O achei um livro bem bacana e hilário. Um abraço.
1. Pode criticar, claro que pode; no entanto, "tendência hipsterizada para a metáfora rasca que pretende simular um pensamento profundo sem nada dizer, muito em voga em Portugal, por exemplo, mas não cria um objeto de leitura apelativo, não cria um romance: cola, com cuspo, pequenos ensaios sobre um tema pessoal que, nas mãos de um bom romancista, poderia até originar um belo livro. O resultado é um tédio imenso." não é uma crítica. Ou é, no sentido literal da palavra. É um ataque, é rude, deselegante, arrogante e tem zero classe.
Eliminar2. A minha opinião é efectivamente sobre o livro: veja que o comparo a outras obras, perante cuja comparação perde. Disse achar aborrecido e não ver o humor que várias pessoas (o "Unknown" incluído, por o ter apodado de "hilário") vêem. Falei do "stream of consciousness" tentado pelo autor. Ou é por ter falado não só sobre o livro, mas sobre o autor, que deixou de ser sobre o livro? Escrevi um único, curto parágrafo sobre a postura do autor perante outros livros. Esclareça, por favor, onde é que esta publicação é somente sobre a postura do autor e nunca sobre o livro.
3. Falo várias vezes de vários autores que têm má postura. Não amo o Lobo Antunes - li um livro dele, há vários anos. Tenho uma publicação aqui sobre um livro dele mas é antiga e, na altura, não desenvolvia tanto aquilo que aqui escrevo. Tenho publicações constantes nos últimos oito anos - decerto encontra alguma na qual falo do autor.
4. O João Reis chamou "azeiteiro" a um outro autor numa outra opinião, por exemplo - e tem, sim, várias opiniões nas quais extravasa da opinião e parte para o ataque. Basta ver o goodreads dele; encontra várias, é muito fácil, siga o link que eu meti na publicação. Um autor (qualquer um!) pode criticar livros à vontade, tal como eu posso, pode não gostar deles à vontade, tal como eu posso. Não é essa a questão. A questão é que há formas elegantes de dizer que não se gostou de um livro, as formas deste autor em particualr se posicionar não é uma delas, nunca.
Lamento que a minha brincadeira, transpondo parte da crítica do autor a um livro e apossando-me de partes dela para criticar um livro dele (que achei aborrecidíssimo) tenha aborrecido o "unknown" a esse ponto. Assine, para a próxima, para eu saber com quem estou a falar. Um abraço.
Querida, não leva a mal e não estressa, pode enfartar. >D Primeiro, meu nome é Marcelo, sou carioca de momento na Europa. E comentei com meu email, como você poderá confirmar no acesso a seu blogue, daí recebi notificação de resposta. Usei meu email gmail e tenho conta no Goodreads. Marcelo! Lamento que surja como anônimo, mas o motivo me ultrapassa.
EliminarNão tenho muito mais a comentar, sua opinião é sua opinião. Se comentei foi por estar procurando material para uma apresentação sobre esse livro, daí achei sua conta e bateu a vontade de comentar. Não tenho essa ideia da postura do autor, nem me interessa no que tem que ver com sua obra. Também não disse que você ama Lobo Antunes, mas todo o mundo, e ninguém sai comentando sua postura arrogante e até malcriada. Confesso que não vi no perfil que menciona essas referências nem tenho alma de buscador e remexedor de perfis com centenas de resenhas, não vejo o propósito, parece perda de tempo. Nem sabia o que era azeiteiro (se é brega, não vejo o problema, todo o mundo fala que livro ou autor é brega). Se falei no que você comentou, foi por você começar sua resenha com esse tema, logo inquinando toda a opinião do leitor, o que é em parte irônico se você pensar no quanto insiste em formas elegantes de o fazer. Mas é brincadeira, não leva a mal, o espaço é seu. Um abraço e tudo de bom para você. Marcelo
Marcelo, querido, não procure material para apresentações em blogs, não só aqui ninguém é académico para poder servir de base fidedigna de informação, como ainda fica stressado, pode enfartar, ainda para mais sem perfil de remexedor em perfis com resenhas. O Blogger/Google não me dão os dados pessoais das pessoas que comentam, colocar o email serve apenas para verificação do comentário por parte da platforma e para permitir o rastreio de quem permite notificações posteriores. Tudo de bom, um abraço ao Marcelo que saiu do anonimato e força nessa apresentação!
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