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R.U.R. & War with the Newts

Um volume com duas obras distintas do autor Karel Čapek, comprado precisamente na República Checa.


Foi, na verdade, o meu namorado que comprou, tendo imensa curiosidade acerca de obras de ficção científica, e tendo pesquisado livros de autores checos antes da nossa viagem; tendo encontrado o volume que juntava ambas as obras, na Univerzita Karlova, adquiriu-o, e começou aí uma bela e longa colecção de livros da SF Masterworks. Após ter lido esta obra, e sabendo que não sou a maior apreciadora de sci-fi, quis que eu a lesse.

E aqui estamos nós.

A primeira obra, R.U.R., é uma peça, algo que eu não esperava. Esta peça levanta basicamente a questão: o que nos faz humanos?

Mas esta peça tem um significado histórico um pouco maior, pois foi esta peça que trouxe ao nosso vocabulário a palavra robot. Exacto: a palavra e a sua disseminação no nosso imaginário vêm de uma peça checa dos anos 1920. R.U.R. é a sigla para Rossum's Universal Robots, a empresa que criou estes andróides.

E claro que a peça é sobre robots. Sobre como estes não são humanos, mas somente "quase" humanos. Parecem humanos - mas será o aspecto que os faz humanos? O facto de se moverem, agirem e pensarem como tal? Ou será preciso algo mais?

HELENA: Then… then tell me, are the male Robots… and the female Robots simply… simply….
DOMIN: Simply indifferent to each other dear Miss Glory. They don't exhibit even traces of attraction.
HELENA: Oh, that is d-r-readful!

E é por todas estas questões que, neste mundo, robots e humanos se confundem entre si. A peça abre com Helena Glory, filha do presidente, a visitar a fábrica da Rossum's Universal Robots. É recebida por Harry Domin, que lhe mostra alegremente a fábrica, ao mesmo tempo que conta como produzem vários robots, e que estes tornam a mão-de-obra tão barata, que o trabalho e a pobreza serão eventualmente erradicados. Helena tem um plano na manga: quer convencer os robots a revoltarem-se. Mas estes não querem - e Helena tem dificuldades em discernir robots de humanos.

DOMIN: (...) within the next ten years, Rossum's Universal Robots will produce so much wheat, so much cloth, so much everything that things will no longer have any value. Everyone will be able to take as much as he needs. There'll be no more poverty. Yes, people will be out of work, but by then there'll be no work left to be done. Everything will be done by living machines. People will do only what they enjoy. They will live only to perfect themselves. 

Helena casa-se com Domin e, dez anos depois, o cenário não é animador: as pessoas deixaram de ter filhos, possivelmente porque os robots fazem com que não seja necessário haver mais pessoas; isto incomoda Helena profundamente, pelo que ela decide destruir a fórmula para criar robots.

Ao mesmo tempo, os robots finalmente decidiram que se querem revoltar, e decidem matar todos os humanos no planeta. Apenas um sobrevive: Alquist, o chefe de construção da fábrica, que os robots poupam para o escravizar, obrigando-o a encontrar a fórmula para fazer novos robots. Isto porque, sem a fórmula, quando os robots actuais estiverem gastos, nada mais sobrará na terra.

Mas Alquist não consegue, e perde a esperança - até que vê dois robots que parecem ter alma. Que estão apaixonados. Se um humano não for capaz de amar, é um humano ou um robot?

HELENA: Why won't you make souls for them?
DR. GALL: That's not within our power.
FABRY: Nor in our interest.
BUSMAN: That would raise the cost of production. Dear Lord, lovely lady, the beauty of our product is that it's so cheap! 

Esta peça é importante (para além do significado enorme em ter trazido a palavra "robot" para o dicionário) no sentido de evitar este futuro distópico triste, como em qualquer distopia. Um futuro onde não há emoções humanas.

Também interessante é contextualizar que esta peça foi escrita pouco depois da Revolução Soviética: aqui, os funcionários acabam por se apoderar do meio de produção (os robots tomam conta da fábrica). Apesar da desgraça e do grande número de mortes, parece haver alguma justiça - Domin tratava os robots horrivelmente, tendo-se mesmo oferecido para matar alguns só para provar a Helena que estes não eram humanos.

HELENA: You want to have her killed?
DOMIN: Machines cannot be killed.



Por sua vez, a obra que se segue, War with the Newts, é uma sátira brilhante: política, social, económica, demonstrando mais uma vez como a humanidade pode ter mão na sua própria destruição graças à ambição e à sede de negócio, através da revolução dos oprimidos. No entanto, desta vez não envolve robots, mas sim salamandras inteligentes, que se revoltam contra a escravatura, envolvendo-se numa guerra mundial contra os humanos. Para este fim, tem uma estrutura única, com pontos de vista diversos, desde narrativas na terceira pessoa a artigos académicos e jornalísticos fictícios.

As Salamandras parecem tolerantes, racionais, mais que os humanos que as oprimem - são colocadas numa situação intolerável, levando a consequências devastadoras. Interessa notar que esta obra satiriza o avanço do Partido Nazi na Alemanha (tendo sido publicado em 1936), e a ameaça do III Reich sobre a Checoslováquia que Capek habitava (que foi de facto anexada em 1938 na sequência do Acordo de Munique e da questão dos Sudetas).

It suddenly occurred to me that every move on the chessboard is old and has been played by somebody at some time. Maybe our own history has been played out by somebody at some time, and we just move our pieces about in the same moves to strike in the same way as people have always done.

É portanto relevante o contexto histórico aquando da publicação esta obra: a insegurança política do período entre guerras na Europa e no mundo em geral, uma Sociedade das Nações falhada (e mencionada durante a obra, detalhe que adorei por ser tremendamente geek no que respeita a esta parte da História).

Apesar de o título focar na guerra, muita da obra foca em como a humanidade travou conhecimento com os Newts (as salamandras), como estes se tornaram servis para com os humanos, e o que levou à guerra - sendo que esta, não obstante o quão catastrófica, ocupa apenas cerca de 40 páginas. As Salamandras são uma espécie anfíbia recentemente descoberta, que habita nas zonas costeiras, espécie esta ensinada a trabalhar em prol de uma melhor exploração dos recursos marítimos.

De facto, a sua descoberta e as interacções iniciais do capitão van Toch com as Salamandras tinham começado de forma inocente: as Salamandras davam pérolas em troca de facas com as quais conseguiam mais facilmente abrir ostras para consumir. As Salamandras são comidas por tubarões; para defender a população, e poder utilizar uma maior mão de obra para as pérolas (e assim obterem mais dinheiro), armam as Salamandras. E, aí, van Toch decide partilhar a sua descoberta com o mundo.

Besides, people never regard anything that serves and benefits them as mysterious; only the things which damage or threaten them are mysterious.

Forma-se o Salamander Syndicate, dinamiza-se a economia mundial, começam as disputas de vários Estados por território costeiro (um pouco como a questão do Corredor de Danzig). Surge uma representação na Sociedade das Nações. À medida que aumenta a exploração das Salamandras, aumentam as colónias costeiras e a população da espécie.

As Salamandras têm alma? Devem receber uma educação formal? Podem ser baptizadas? Quem é a Great Salamander que elas veneram?

In this way we consumed the newt whom we had come to know as Hans; Hans was an educated and intelligent animal with a special talent for scientific work; it had worked in Dr. Hinkel’s department as a laboratory assistant and could even be trusted with delicate chemical analyses. We would spend entire evenings talking with Hans who enjoyed boundless curiosity. It became unfortunately necessary to dispose of Hans after he became blind after my experiments with trepanation. Hans’s meat was dark and with a slight flavour of mushrooms, but left no unpleasant effects. There is no doubt that in the event of need arising from war it would be possible to use newt meat as a cheap substitute for beef.

Rapidamente, esta situação gera tensão para muitos indivíduos, nomeadamente em discussões sobre quais devem ser os direitos das Salamandras - ou se estes devem ser totalmente abolidos. Os anos passam, e as Salamandras querem participar das actividades humanas normais. As Salamandras são a nova classe trabalhadora. As Salamandras trabalham, mas ninguém sabe de facto o que elas fazem debaixo de água.

E aí começam os terramotos e as inundações de vastas regiões costeiras... E agora a humanidade tem de aguardar durante séculos, no topo das montanhas, até poder regressar.

“A new myth about a world flood will arise which God sent for the sins of mankind. There will also be legends of submerged and mythical lands which were the cradle of human culture; perhaps there will be a fable about a land called England, or France, or Germany.”
“And then?”
“I don’t know what comes next.”

Esta obra demonstra o efeito da estupidez humana, da ambição, da necessidade de demonstração de poder e de obtenção de lucro que são normais, rotineiras. Quão rápido desistem os humanos da decência, compaixão e respeito, em prol do dinheiro, lucro fácil e poderio militar? O que acontece quando o oprimido se levanta contra o opressor? Quais as consequências do progresso (progresso a todo o custo - a custo de outros), da manipulação da natureza? Qual o papel do Homem nos conflitos que Capek apresenta?

Ambas as obras neste volume são trágicas, mas ao mesmo tempo demonstram como é possível haver actos de humanidade mesmo no fim.

5/5

Podem comprar esta edição aqui, ou A Guerra das Salamandras, em português, aqui.

Comentários

  1. Adorei descobrir, anotei o livro, efetivamente gostaria de ler os 2 textos. Não costumo ler ficção científica quando transformadas em aventuras espaciais futuras, mas adoro quando obras de reflexão, muitas vezes distópicas para alertar o presente. Anotado

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    1. Carlos, esta obra foca-se no conflito, na arrogância da humanidade, nos problemas do desenvolvimento, e não em tecnologias, raças ou situações inexistentes, no mero imaginário. Creio que irá gostar. São distopias brilhantes, com um tremendo foco na sociedade.

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  2. Olá! Já conheces o meu livro "Tudo o que Sempre Quis" lançado em Maio de 2018?
    Deixo aqui a sinopse:
    «Ninguém é forte o suficiente ao ponto que não precise de outro alguém.»

    Estou a trabalhar numa campanha para ajudar o João, um jovem de Almeirim, Santarém que precisa de ajuda com tratamentos médicos (mais informações: https://the-choice-26.blogspot.com/2018/12/vamos-ajudar-o-joao.html) e gostava de informar que por cada livro vendido 40% irá reverter para o João.
    Caso estejas interessada em adquirir um exemplar autografado contacta-me no blog ou em aritacorreia.writer@gmail.com.
    Obrigada!

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  3. Foste tu na verdade que encontraste o volume, estavas a ajudar-me na procura deste livro que acabou por ser dos que mais gostei de ler e por isso te estou mais que agradecido; tão curioso todo esse acto de procurar um livro e pensar no depois, no quanto gostei do livro, no quanto gostei de ir a Praga contigo e de procurar estes livros nas livrarias tão boas que visitámos

    'Ao mesmo tempo, os robots finalmente decidiram que se querem revoltar, e decidem matar todos os humanos no planeta.' genial, não foi só nesta peça que foi introduzida a palavra robot como disseste mas também todo este imaginário em que os robots mais tarde ou mais cedo se vão revoltar e virar-se contra os humanos e querer acabar com a raça humana
    'Apenas um sobrevive: Alquist, o chefe de construção da fábrica, que os robots poupam para o escravizar, obrigando-o a encontrar a fórmula para fazer novos robots.' toda esta parte foi assustadora de ler, macabra, quase que o senti nos ossos
    'Isto porque, sem a fórmula, quando os robots actuais estiverem gastos, nada mais sobrará na terra.' o facto de estar a ler um livro, uma peça, em que o que saber se continuava a existir 'vida' na terra se compreendia entre robots descobrirem como se 'reproduzirem' sem precisarem da ajuda do ser humano, literalmente, do único ser humano vivo, foi tão.. nem sei, não tenho palavras, foi inesquecivel mesmo, muito forte, muito forte mesmo..

    'HELENA: Why won't you make souls for them?
    DR. GALL: That's not within our power.
    FABRY: Nor in our interest.
    BUSMAN: That would raise the cost of production. Dear Lord, lovely lady, the beauty of our product is that it's so cheap!' tão bom, lembro-me bem dessa frase do Busman, um clássico que assenta bem na definição do que é ser homem, ser humano

    'Um futuro onde não há emoções humanas.'

    Acabei agora de ler o post e estou sem palavras Ba, talvez o post que mais gostei no teu blogue, escreves muito muito bem, estou sem reacção, até fui falando da R.U.R. enquanto recordava com saudade a leitura deste livro, sempre com a banda sonora da Angel Olsen de fundo que se adequou tão bem, mas tu dizes tudo, falar do War with the Newts seria mesmo infrutífero, acho que é dos melhores livros alguma vez escritos, só posso aconselhar as pessoas a lerem e a descobrirem por si esta obra magnífica a tantos tantos níveis
    Obrigado e ainda bem que gostaste, fico muito feliz mesmo

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    1. Lembro-me de facto do meu convincente argumento de que um só volume teria as duas obras que te tinham despertado a curiosidade numa pesquisa prévia por autores checos :p fico muito feliz por o livro ter acrescentado uma memória tão boa de uma viagem da qual gostei tanto, a cidade mais bonita que já tive oportunidade de conhecer e onde adoraria voltar!

      É verdade, a ideia de que os robots se vão revoltar e dominar o mundo - mas também na obra seguinte as salamandras o procuram fazer, curiosamente. Karel Capek parece ter focado muito na destruição do homem causada pelo próprio homem - os sentimentos de falsa superioridade, a ambição, a arrogância... as emoções humanas acabam talvez com o início destes sentimentos, e não na extinção da raça

      E eu fico muito feliz por teres gostado do post, não consigo fazer justiça ao livro, não sinto :(

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    2. 'as emoções humanas acabam talvez com o início destes sentimentos, e não na extinção da raça' talvez
      Eu sinto Ba, que até foste além disso, gostei muito; mas o mais importante é tu teres gostado de o ler, algo que transparece muito neste post :p

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    3. Gostei mesmo muito, muito obrigada :$

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