Avançar para o conteúdo principal

Morte na Pérsia

Nunca tinha lido literatura de viagem.


E, de certa forma, continuo sem ter lido.

Peguei em Morte na Pérsia na biblioteca por ser escolha do Clube dos Clássicos Vivos. Não é o tipo de literatura que me apele, suponho; de facto, nunca pensei em ler sobre viagens alheias e, regra geral, prefiro ler ficção.

- O que é que espera da Pérsia? - perguntou-me Malraux. Ele conhecia as ruínas da cidade de Rages. Conhecia também o entusiasmo pela arqueologia. Reflectia com olhar claro sobre as paixões humanas e desmascarava-as, excepto o que delas restava: o sofrimento. Perguntou-me: "só por causa do nome? Só porque fica muito longe?" E eu pensava na terrível tristeza da Pérsia...

Por que motivo considero que continuo sem ter lido? Porque este livro retrata mais uma viagem pessoal, interior, que propriamente uma viagem pela Pérsia. Annemarie Schwarzenbach era jornalista, de origem suíça, descendente da aristocracia. A sua vida parece ser profundamente fascinante, desde as múltiplas viagens à sua morte parva quando era ainda muito nova, passando pela sua homossexualidade.

Durante a sua vida, foi três vezes à Pérsia, a primeira das quais em 1932, e é um pouco dessas viagens que nos é apresentado neste livro.

"Terrível tristeza" seria, na verdade, um bom nome para este livro. Annemarie sofre claramente de depressão ou um outro distúrbio psiquiátrico; fala frequentemente de querer morrer, e em dois momentos tem conversas com "um anjo" sobre a sua "desesperança" (palavra que é frequentemente utilizada neste livro). No fundo, ela recusa-se a lidar com os desertos do Irão, demasiado vastos. O primeiro destes encontros é no Vale de Lar, o "fim do mundo". As paisagens são-nos descritas como vazias, áridas, lá está, a terrível tristeza, onde não encontra conforto.

Achei as partes da viagem em si bastante aborrecidas - muito descritivas, planificadas. Relata-nos algumas conversas com outras pessoas que, como ela, estão na Pérsia, e alguns momentos são mais interessantes que outros.

- Gostas demasiado deste lugar - disse eu.
Ele assentiu com um aceno da cabeça. - Há quatro anos já - disse ele, - e há quatro anos que não volto à Alemanha. Os americanos odeiam a Alemanha - prosseguiu, - odeiam a Alemanha como só gente ignorante é capaz de odiar. Não sabem que a Alemanha não é a suástica, e esquecem-se que o professor também era alemão.
- Não lhes consegues explicar?
- Eu? - perguntou ele.
- Tu conheces a verdadeira situação.
- Não, estou longe de conhecer a verdadeira situação. Nestes anos todos, tive saudades de uma Alemanha que claramente já não existe. E o que hoje existe, ninguém pode defender. Ninguém pode defender aquilo!

O livro fica mais interessante quando ela larga a viagem para falar do seu romance com Ialé, na segunda parte do livro. Esta parte lê-se melhor, mais fluidamente, apesar de parecer entrar mais na tristeza e na perda de fé na humanidade. Isto possivelmente deve-se ao facto de Ialé ser uma personagem muito mais interessante, com uma vida familiar complexa e confusa e uma aura trágica em seu redor. Nas últimas páginas, lemos:

Hoje acordei debaixo do peso de uma aflição desumana. Sonhava, queria gritar, mas já não tinha voz, e quando tentei despertar, sacudir para longe a angústia daquele pesadelo, encontrei apenas o medo, que me cobria como um cobertor preto.

Schwarzenbach adoeceu gravemente na Pérsia, mas sobreviveu; também sobreviveu a tentativas de suicídio, mais tarde; e, aos 34 anos, caiu da sua bicicleta e morreu. Neste livro, relata a solidão numa viagem a um sítio que é física e culturalmente distante, descrevendo a isolação que sente nos vastos desertos da Pérsia, mesmo quando acompanhada (veja-se a história com Ialé). A história de vida desta mulher parece fascinante, especialmente por ter sido tão curta.

Ainda assim, a sua obra não me cativou.

3/5

Podem comprar esta edição aqui.

Comentários

  1. Cold blooded logo no início, respect
    'e, aos 34 anos, caiu da sua bicicleta e morreu' didn't see that coming
    Bem o que dizer, acabei de ler este post depois de ler o do Jean-Paul Sartre, dois livros seguidos muito fortes e apelativos de negativismo num certo sentido, mas a vida também é assim de vez em quando, para muita gente é-o durante toda uma vida
    Também nunca li literatura de viagem, tenho, no entanto, alguma curiosidade em relação a alguns livros do género: não fazendo este parte desse leque, não porque me pareça desinteressante mas porque outros me parecem mais interessantes, tão simples quanto isso - mas quem sabe no futuro, o problema é mesmo o não haver tempo para tudo
    Gostei do post ainda assim, porque gosto sempre de ler o que escreves, como escreves e também porque gostava muito de viajar para os lados da antiga Pérsia um dia
    O facto de referires que se trata no fundo mais de uma viagem pessoal do que uma viagem no sentido literal para mim ainda é mais interessante, às vezes com o conhecer de outras pessoas conhecemos-nos melhor a nós próprios eu acho

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Cold blooded? :p
      É para teres cuidado com a bicicleta também :o
      O livro que estás a ler agora, da Irlanda, não contará como literatura de viagem? Não percebo muito do género, de facto! Que outros te apelam?
      Um dia, um dia, altas viagens pelo Irão!
      Talvez, mas também há pessoas que não acrescentam nada nas nossas vidas, não? :$ não sei, não fiquei muito fã do livro, confesso!

      Eliminar
    2. "Nunca tinha lido literatura de viagem (...)
      E, de certa forma, continuo sem ter lido." para quem ainda não tinha lido mais do post pareceu-me um burn enorme no livro

      Contará sim mas ainda não o acabei!
      Claro que há sempre essas pessoas mas não sabes até conheceres/leres etc.

      Assim que me lembre de repente há dois livros que me apelam, do mesmo autor, o jornalista Tiago Carrasco, o Até Lá Abaixo e a Estrada da Revolução!

      Eliminar
    3. Oh, acaba por não falar particularmente da Pérsia, da viagem física, mas da viagem espiritual, que acaba por ser diferente e se desenquadrar do género literário!

      Noted :p nunca ouvi falar no autor nem nos livros!

      Por curiosidade, a Tinta-da-China tem toda uma colecção dedicada a literatura de viagem: http://www.tintadachina.pt/booksC.php?code=04a86be3590e08e3136590141f8a0410

      Mas o que me interessa mais é este, que relata a vida de várias mulheres viajantes (incluindo a Annemarie): http://www.tintadachina.pt/book.php?code=fda369557d54c5f1a934692b5237f8dd

      Eliminar
    4. Bem interessante essa coleccção Babé, obrigado! O que referes em particular idem

      Eliminar
    5. Hoje na Feira de Natal da Tinta da China, maybe? :p

      Eliminar

Enviar um comentário