Existencialismo e Jean-Paul Sartre.
Este é um autor que eu estive perto de comprar quando, no ano passado, passei o Outono em Paris, mas, entre várias outras, tal compra não se deu. Surgiu, portanto, a oportunidade de ler o autor em português com esta edição da Livros do Brasil, que aproveitei prontamente.
Aos 31 anos, Sartre estava no mesmo sítio em que muitos de nós nos encontramos: perdido, a sentir que a vida não o levava pelos caminhos que ele imaginara. E é desse contexto que surge este livro.
A Náusea é o diário ficcional de um homem chamado Antoine Roquentin, que tem dinheiro suficiente para não trabalhar, e que passa a maioria do seu tempo livre a escrever sobre uma figura histórica obscura do séc. XVIII. Para este fim, decide habitar na cidade de Bouville, na província, longe de tudo e de todos os que conhece. Passa longos dias na biblioteca local, onde encontra um homem que está a ler livros técnicos por ordem alfabética, o Autodidata. Este estilo de vida rapidamente o convence de que o mundo não quer saber se ele está bem ou mal, vivo ou morto. Este diário demonstra um universo vazio, e é este vazio existencial, este nada, esta falta de significado, que cria uma náusea a Antoine. A náusea que dá o nome ao livro, que marca a dor da existência.
Então a Náusea acometeu-me, deixei-me cair no assento, nem sequer já sabia onde estava; via as cores girarem lentamente à minha volta, tinha vontade de vomitar. E aqui está: desde então que a Náusea não me deixa; a Náusea apossou-se de mim.
É um pouco neste sentido que surge o existencialismo que marcaria o trabalho de Sartre e que o tornaria famoso.
O seu objectivo, ao escrever um diário, é registar os detalhes das suas experiências diárias, de modo a perceber a loucura em que crê estar a cair. De facto, o livro abre com estas palavras:
O melhor seria escrever os acontecimentos dia a dia. Fazer um diário para os considerar com clareza. Não deixar escapar as diferenças de pormenor, os factos miúdos, mesmo quando parecem insignificantes, e sobretudo ordená-los. Tenho de dizer como é que vejo esta mesa, a rua, as pessoas, a minha bolsa de tabaco, visto que foi isso que mudou. Tenho de determinar exatamente a extensão e a natureza dessa mudança.
Sozinho em Bouville, Antoine aproxima-se mais de si mesmo, e da náusea que o invade. O problema da náusea é precisamente o facto de ser individual, única: apenas ele a sente, tornando a sensação tão invasiva e sufocante que parece impossível escapar, exacerbando a sua solidão. E Roquentin procura escapar da náusea não só através do seu projecto pessoal (o livro), mas também sexo casual.
Um dia, Antoine recebe uma carta da sua ex-amante, Anny, que indica que em breve regressará das suas viagens, e gostaria de se encontrar com ele. O prospecto deste encontro é a única coisa que ajuda Antoine a passar o tempo, até porque o seu projecto histórico o aborrece cada vez mais. Mas mesmo este encontro é em vão - Anny não o quer de volta.
- Quer dizer que confessas: tinhas-te esquecido de mim, completamente. Ter-me-ias reconhecido, se tivesses cruzado comigo na rua?
- Com certeza. Não é disso que se trata.
- Com certeza. Não é disso que se trata.
- Lembravas-te ao menos da cor dos meus cabelos?
- Claro que sim! São louros.
Põe-se a rir.
- Com que orgulho o dizes! Agora, que os tens à frente, a resposta não tem grande mérito.
O Autodidata acaba por ser uma das personagens mais interessantes da obra: não só por ler por ordem alfabética, como Antoine a certo ponto se apercebe (qualquer um acharia este facto bizarro; Antoine Roquentin acaba por admirar o homem). Antoine admira o projecto enorme a que o Autodidata se dedica, de aprender tudo, por ordem alfabética, sem se aperceber que este o faz pelo mesmo motivo que Antoine tem o seu projecto: para se distrair da imensidão do vazio que é a sua vida. E que, quando este projecto acabar - quando os projectos de ambos acabarem -, não sobrará mais nada. Este homem também declara que vai para a biblioteca pela sua necessidade emocional de estar perto de outras pessoas: é um humanista, além de socialista. No entanto, esconde um segredo muito mais obscuro... que Antoine interpreta como uma extensão do seu humanismo, mas que reconhece que dificilmente será aceite pela sociedade.
Os sentimentos descritos nesta obra são reais, e perigosos, precisamente por serem reais. Os pensamentos partilhados são pensamentos que muitos temos ou teríamos - e com os quais não sabemos o que fazer, sem ser sentirmo-nos mal. Nauseados. Sem ter uma alternativa visível, ou viável.
Mas Sartre também indicia que somos nós que somos responsáveis pelas nossas acções, logo, somos nós que devemos dar um significado à nossa vida. É através da escrita do seu livro que Antoine procura dar um significado aos seus dias vazios, por exemplo.
Perdi o gosto pelo trabalho; já não posso fazer nada, senão esperar a noite.
Medo, ansiedade e sofrimento, o sentimento de que nada importa, de que a vida não importa. Livro de leitura complicada, especialmente para quem já se sente um fracasso na vida.
Cá está uma obra que penso que li há muitos anos atrás, mas não me lembro de nada da estória... a não ser de uma conversa que tive depois com outra pessoa que o lera onde eu concluía que o livro dera-me náuseas...
ResponderEliminarÉ de facto um livro capaz de causar reacções fortes, mesmo sem ter uma narrativa particularmente recheada de eventos; a angústia do protagonista transfere-se facilmente para o leitor...
EliminarAcho que tentei ler este livro cedo de mais, logo após ter descoberto a Simone de Beauvoir. E a minha edição Europa-América também não é nada apelativa. Tenho de arranjar outra e dar-lhe uma segunda oportunidade.
ResponderEliminarPaula
Eu a Simone ainda não li, mas tenho ali os dois tomos do La Force des Choses. Dá-lhe uma segunda oportunidade - talvez nesta edição? As edições da Europa América, coitadinhas... só lhes compro o Jorge Amado de fundo de catálogo, e é porque não carecem de tradução :/
EliminarMas como a Force des Choses já é o terceiro volume da autobiografia dela, se quiseres começar pela infância dela, vale mesmo a pena ler as Memórias da Menina Bem Comportada. É um belo retrato social e psicológico de uma mulher fascinante. Em português está estupidamente esgotado, mas tendo a biblioteca e lendo noutras línguas, estás sempre safa.
ResponderEliminarPaula
A fille rangée :) sei que aquele não é o primeiro, mas cruzou-se comigo por chance... sabes se a ordem cronológica é estritamente necessária?
EliminarNão sou mesmo a pessoa certa para to dizer porque também leio aquilo com que me vou cruzando ou me apetece no momento e não li nem a Força da Idade nem a Força das Coisas. O que tenho para ler a seguir é Uma Morte Suave, sobre a morte da mãe dela. Maior salto temporal não podia haver! Ainda assim, talvez fosse engraçado saberes como conheceu o Jean-Paul e como se formou como pessoa antes de leres a fase adulta dela.
EliminarPaula
Excelente ponto - lá vou eu atravessar os catálogos da biblioteca em busca da Menina Bem Comportada!
EliminarExistencialismo e Jean-Paul Sartre, parece prometedor, a foto também ajuda, boa capa e bom nham
ResponderEliminarPosto isto, vamos ao que importa:
Compraste bastantes livros em Paris, acho engraçado como querias ter comprado este lá, não aconteceu e mesmo assim já o leste provavelmente antes de outros que vieram de França contigo ou não? :p
Gostava muito de ler este livro e outros do autor e de mais filósofos em geral
Não gostei de como acabaste o post, do que escreveste, do que escreveste num blogue que é teu, de literatura, de cultura, tão bem escrito, tão pessoal, tão bom, uma contradição estranha mas claro, não é por fazeres muitas coisas boas que tenhas de te sentir bem, só espero que isso mude porque não há razão para te sentires assim nem é justo
Bom nham? Tu a apreciar café? :o
EliminarÉ verdade, acho que ainda não li nem um :$$$ espera, li o The House on Mango Street! Portanto sim, li antes da maioria dos que trouxe comigo :(
Mas... eu não disse que me sentia assim! Disse que é uma leitura complicada por poder exacerbar esse tipo de sentimentos :$ o autor vai muito a fundo nesse tipo de questões, demonstra muito a dor da existência vazia do narrador, é uma leitura densa que me parece ser mais complicada ainda para quem tiver crises existenciais de facto :$
Agora que olho melhor é realmente uma chávena de café, parecia-me à primeira vista um capuccino ou algo do género
Eliminar'Só' leste o The House on Mango Street? Pensava ainda assim que já tinhas lido mais mas, lá está, não há tempo para tudo e vontades vão surgindo
Obrigado pelo esclarecimento Ba, kudos
É um latte, na verdade, mas não deixa de ser cafezinho :p
EliminarSó :$ vontades, livros, vida em geral, comprei mesmo muitos livros e tenho muitos por ler, é um facto!