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As I Lay Dying

Por onde começar, naquela que foi a minha segunda experiência com William Faulkner?


Recordando, talvez, a primeira: em Fevereiro de 2011 (nas férias entre semestres do primeiro ano do meu mestrado), li The Sound and the Fury num ápice. É, ainda hoje, um dos meus livros preferidos: costumo equipará-lo ao equivalente emocional de se ser atropelado por um camião TIR.

Demorei a ler um segundo livro do autor, um pouco por medo de não corresponder às, agora, muito altas expectativas. Mas As I Lay Dying é uma obra-prima, tal como The Sound and the Fury o fora, uma obra prima sobre uma família disfuncional, grotesca, a história de uma roadtrip contada por vozes tão loucas como as do livro que eu outrora lera.

É um livro confuso, diria mais que The Sound and the Fury, pelas diversas vozes que o contam: cada capítulo é-nos apresentado por um narrador diferente, e não é fácil entrar na dinâmica familiar. São 59 capítulos, por 15 narradores diferentes. É um livro repulsivo e violento, mas é maravilhoso e os sentimentos que expressa são universais.

Mas como?

A história que nos é apresentada neste livro é simples, linear, e absurda. Uma família rural do Mississipi, anos 20. Addie Bundren, a mãe da família, está a morrer, e o seu marido, o horrivelmente preguiçoso Anse, decide respeitar o desejo final da esposa: ser enterrada junto da sua família, em Jefferson. Addie odiava tanto o marido que não queria ser enterrada junto dele, percebam.

O primeiro capítulo é narrado por Darl Bundren, que nos apresenta, além da sua mãe, os seus irmãos Cash, que tem jeito para a carpintaria e está a construir o caixão perfeito para a sua mãe moribunda, e Jewel, reservado e introvertido. No início do livro, temos os pontos de vista dos três irmãos, de Anse, do irmão mais novo Vardaman, de Dewey Dell, a única irmã, de 17 anos, e dos vizinhos ricos, Vernon e Cora Tull. Enquanto Addie morre, Jewel e Darl vão fazer umas tarefas para Vernon, que lhes vai render três dólares. Os irmãos esperam regressar antes da morte da mãe, o que não acontece - o ponto mais interessante é que a morte de Addie é-nos narrada por Darl, que não se encontrava presente.

Após a morte da matriarca, a família segue viagem, naquela que é a mais difícil e absurda roadtrip de sempre, até Jefferson, a cidade mais próxima. A pobreza extrema dos Bundrens acaba por dificultar imenso a viagem. Vardaman está traumatizado com a morte da mãe, e acha que ela é comparável ao peixe que ele apanhou imediatamente antes da morte dela - tanto Addie como o peixe estavam vivos, e agora estão mortos. Dewey Dell está grávida e é solteira. Anse, entretanto, vive obcecado com o prospecto de arranjar os dentes.

My mother is a fish.

Estamos no pico do verão mas chove torrencialmente, há uma inundação, e a ponte que a família deve atravessar cede. Cash volta a partir uma perna, lesão antiga. O caixão quase afunda no rio, mas Jewel salva-o. O corpo da mãe começa a deteriorar, e abutres seguem a família. As mulas que puxavam a carruagem afogam-se, e Anse, orgulhoso, recusa-se a aceitar ajuda de Vernon.

Temos um capítulo narrado por Addie, que sim, está morta. Descobrimos os sentimentos dela acerca do marido, dos filhos, especialmente Jewel, e da vida; Jewel sempre fora diferente, especial, e tinha sentimentos fortes por cavalos, nomeadamente pelo dele, pelo qual trabalhara noites a fio para comprar.

He had a word, too. Love, he called it. But I had been used to words for a long time. I knew that that word was like the others: just a shape to fill a lack; that when the right time came, you wouldn't need a word for that anymore than for pride or fear.

De volta à viagem: Anse acha que deitar cimento na perna do filho vai ajudar. Anse empenha todos os seus bens e vende o cavalo de Jewel sem avisar o filho para comprar mais mulas. Darl tenta livrar-se do caixão da mãe. Dewey Dell vê as suas tentativas de abortar goradas. Vardaman não compreende por que é que ele é pobre e os meninos da cidade são ricos. Anse pede pás emprestadas para enterrar a esposa, arranja os dentes à custa dos sonhos e necessidades dos filhos, e casa de novo.

Quase parece um conto cómico, mas não é. É uma série de monólogos tristes e deprimentes, em que temos acesso aos pensamentos dos personagens sem qualquer censura.

I don’t know what I am. I don’t know if I am or not. Jewel knows he is, because he does not know that he does not know whether he is or not. He cannot empty himself for sleep because he is not what he is and he is what he is not.

A história é, portanto, simples, linear - fala-nos de problemas sociais, da falta de escolha dos que vivem na pobreza, dos que não têm educação formal, do Sul rural. A falta de esperança de Dewey Dell, no fim do livro, é devastadora. O facto de estes irmãos serem expostos a situações extremas para poderem enterrar a mãe na cidade onde ela nasceu, situações das quais dificilmente irão recuperar.

Os abutres a seguirem a expedição? As pessoas a tapar o nariz, por onde eles passam? Há imagem mais mórbida?

Toda a família é posta numa situação difícil com a morte de Addie: a filha grávida, o filho com a perna partida, o filho que só quer que a mãe tenha um funeral decente, o filho que sacrifica a sua única posse, o filho que só quer afastar os abutres e os gatos do caixão da mãe, e Anse, Anse que empurra todos na sua demanda, de modo a cumprir a sua promessa. E os comportamentos de Anse são tudo menos aceitáveis.

In the afternoon when school was out and the last one had left with his little dirty snuffling nose, instead of going home I would go down the hill to the spring where I could be quiet and hate them.

O ponto mais interessante do livro será, talvez, quando Cash pensa para si mesmo na definição de loucura. O que define loucura? Quem tem o direito de dizer que alguém é louco? Enquanto vemos o mesmo evento desenrolar-se de vários pontos de vista diferentes - e os vários problemas e ressentimentos que surgem por haver uma falta de comunicação ENORME -, quem tem razão? Cora acha que Darl é o melhor filho que Addie poderia ter, mas Addie acha que Jewel seria a sua salvação. Anse acha que está a fazer o mais certo, mas todos questionam os seus motivos. Dewey Dell tem medo de Darl e da forma como ele parece compreender as coisas.

E não só as emoções são contestáveis: mesmo os factos o são, neste livro. Recordemos que é Darl, ausente, que nos relata a morte da sua mãe. Há um incêndio, por exemplo, que demoramos alguns capítulos a compreender. O que os narradores nos relatam: são acontecimentos passados ou correntes? Como é que Addie, já morta, tem um capítulo?

Sometimes I ain’t sho who’s got ere a right to say when a man is crazy and when he aint. Sometimes I think it aint none of us pure crazy and aint none of us pure sane until the balance of us talks him that-a-way. It’s like it aint so much what a fellow does, but it’s the way the majority of folks is looking at him when he does it. (...) That’s how I reckon a man is crazy. That’s how he can’t see eye to eye with other folks. And I reckon they aint nothing else to do with him but what the most folks says is right.

Ao passo que cada membro da família é forçado a desistir dos seus sonhos, necessidades, ou posses, a morte começa a parecer a melhor alternativa às dificuldades das suas vidas e dos tempos. O grande conflito desta obra é a família. O amor, a obrigação (a promessa que Anse fez a Addie), os papéis que cada membro deve cumprir na família. A viagem mostra-nos obstáculos, perseverança, mas o objectivo final acaba por ser... nulo, desnecessário. Os motivos de Anse serão altruístas? Enterrar Addie em Jefferson tem algum propósito real?

A resposta é não. Tudo o que a viagem consegue é trazer mais miséria à família.

5/5

Podem comprar esta edição aqui (parece estar esgotado em português)
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Comentários

  1. Pois após O Som e a Fúria, que gostei e me marcou, a verdade é que não mais voltei ao autor, não sei porque por vezes temos autores que nos marcam tão intensamente e levamos anos a regressar. Faulkner é um desses casos. Será porque as suas obras são de difícil digestão?
    Curiosamente no dia em que leio este texto da Bárbara, foi pouco depois de eu buscar à estante o meu segundo Faulkner... "Luz em Agosto". Não sei como será a leitura, só hoje volto a ele.
    Não sei se esse "Na minha morte", penso que o nome em Portugal, será mais ou menos deprimente do que esta luz, mas suspeito que ambos são de digestão pesada.

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    1. Exactamente a mesma experiência - um hiato de anos após O Som e a Fúria.
      Esta obra também foi difícil de digerir - a avaliar pelas duas que li de Faulkner, e sem saber o tema de "Luz em Agosto", acredito que seja igualmente pesado, deprimente.
      Aguardo ansiosamente pela sua opinião de mais um Faulkner!

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  2. I'm sold. Já tinha ficado curiosa com a tua review do Sound and the Fury agora quero mesmo ler Faulkner.

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    1. O The Sound and the Fury continua a ser dos meus favoritos, algo que, apesar de tudo, este não "atingiu" :) este é possivelmente um pouco mais "fácil", apesar dos cerca de 20 narradores. Ansiosa para que leias Faulkner!

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  3. Depois de ver os vídeos da Cristina do Linked Books e da Carla Gaspar que leram O Som e a Fúria para o Clube dos Clássicos Vivos, fiquei cheia de vontade de dar uma nova hipótese ao Faulkner, e agora vens tu a dizer que, sim, senhor, vale muito a pena. Li um grande pedaço de Luz de Agosto, curiosamente no mesmo ano em que tu te estreaste com ele, mas dei-me por vencida. Caramba, se eu leio e adoro grandes papões da leitura como o Saramago e o Lobo Antunes, também hei-de levar a melhor sobre o Faulkner!!! Isto sou eu a convencer-me a mim própria, porque me sinto mesmo intimidada.
    Paula

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    1. Participei do encontro dessa leitura, mas não da leitura em si, por já ter lido o livro há muito tempo, não obstante adorá-lo.
      O Luz em Agosto, como disse ali em cima ao Carlos, desconheço, mas a julgar por estes dois, acredito que seja maravilhoso. Não apreciei particularmente Saramago nem Lobo Antunes - Faulkner é maravilhoso e acho de leitura muito mais agradável que estes dois. Escrita menos seca, pelo menos. Não te deixes intimidar :)

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    2. Ups, queria dizer Carla Gomes.
      Comecei hoje a ler a Matilda do Dahl, e ela já tinha lido o Som e a Fúria ainda não tinha feito 5 anos. Se isto não é para me humilhar... Tem de ser este ano!
      Paula

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    3. Adoro a Carla!
      E também adoro o Matilda. Que inspiração de miúda :) (li o livro depois de ter lido o do Faulkner, curiosamente!)

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