Avançar para o conteúdo principal

Farda Fardão Camisola de Dormir

Já tinha saudades de ler Jorge Amado.


Já saberão, decerto, que adoro Jorge Amado, que é um autor que há mais de 15 anos que não falha em me dar gozo ler. Comprei este livro na Feira do Livro de 2017, não imensamente planeado, mas com receio de que viesse a esgotar, como esgotou a edição da Dom Quixote d'Os Subterrâneos da Liberdade

Tive já o privilégio de ler alguns livros do autor; este foi o meu oitavo livro, se não estou em erro. E Jorge Amado não perde a magia.

Esta obra é mais política que algumas - se Tieta ou Gabriela são fundamentalmente sociais, Capitães da Areia, ou Farda Fardão Camisola de Dormir têm uma índole mais política e moral. Mas político não significa aborrecido (ou vejam o meu amor por Afirma Pereira).

Anos 40. Com a morte súbita do poeta romântico Antônio Bruno, poeta da liberdade e do amor, membro da Academia Brasileira de Letras, surgem as eleições para nomear o seu sucessor. Reparemos desde já na data: anos 40, Segunda Guerra Mundial a deflagrar na Europa, Estado Novo de Getúlio Vargas no Brasil. Apesar de o Brasil ter cortado relações diplomáticas com a Alemanha pouco depois do início da guerra, e de se ter envolvido, lutando do lado dos Aliados, havia simpatias germânicas.

Ainda no hospital, escreveu lancinante poema. Pela primeira e única vez, a doce saga de amor cedeu lugar ao canto de guerra, estrofes de fogo e sangue, de insulto e praga, anátema contra Hitler e seus sequazes. Roto pela humilhação e sofrimento da cidade bem-amada, pátria da civilização e do humanismo, esmagada sob as botas nazistas, o poeta Bruno, no entanto, ergueu-se inesperadamente do leito de enfermo e, superando a desesperança e o desgosto de viver, previu e anunciou o dia próximo e iniludível da libertação, quando Paris, a alegria e o amor ressurgiriam.
Assim, o Canto de Amor para uma Cidade Ocupada concluía com ardente apelo ao prosseguimento da luta até à vitória final. Estranho alento, entusiasmo inexplicável partindo de quem deixara de acreditar na vida.

E o Brasil é um país com longo historial de ditaduras militares. Portanto, não é de admirar quando o primeiro candidato à vaga é o coronel Sampaio Pereira, alto patente militar, chefe da repressão política, nazi assumido. Claro que a possibilidade de ver este homem no lugar do boémio Bruno levanta o pânico na Academia - e prontamente têm de arranjar um novo candidato para criar oposição: o reformado general Waldomiro Moreira, único militar com obra publicada suficiente para se poder apresentar à vaga.

 - Elogiar, elogiarei, se necessário. Na guerra vale tudo, não é hora de se estar com escrúpulos. Agora, ler... não, é pedir demais. Me-ufanismo, estilo terso... Conheço o gênero. Quanto menos tenha lido, mais poderei elogiar.

O livro entrelaça a campanha eleitoral na Academia com a vida de Antônio Bruno. Se Sampaio Pereira parece o pior candidato possível, fascista, apoiante da ditadura, Waldomiro parece ser apenas um mal menor: as suas obras são adjectivadas como sofríveis, bem como o próprio homem. Mas é necessário fazer frente ao mal, a todo o custo...

Não há aqui personagens principais: seguimos vários personagens, cada um com o seu papel na elite dentro da ditadura (mesmo sendo uma elite cultural). É interessante e importante ver como esta elite perseguiu os seus interesses dentro de um regime opressivo, como lutaram para manter a liberdade na qual Bruno vivera toda a sua vida, a sua morte em Paris, as suas várias amantes.

Lembra alguém. Dona Hermínia vai buscar uma face no passado - parece o jovem segundo-tenente tímido e apaixonado que ela conhecera havia muito tempo, num outro tempo; declamava versos suplicando um beijo. Dona Hermínia de repente se recorda, começa a chorar baixinho.

Não é o livro mais fácil ou mais rápido para o leitor entrar: mas é uma leitura imparável, entre eventos, histórias e momentos e sequências imprevisíveis. É impossível resistir à luta dos dois senhores que ambicionam o lugar vago de Antônio Bruno. Militares, lutam sem armas - lutam através de palavras, de ideologias. A política entra em campos que não são tipicamente vistos como políticos, o campo da literatura, da Academia. A luta por uma cadeira acaba por se tornar numa luta contra o fascismo, contra a ditadura. 

É maravilhoso.

Mesmo a Academia de Letras entra num rodopio de esquemas, quase corrupção, na luta contra o regime. O final não acaba bem para todos - mas é o bem que ganha, a moral, a cultura, a liberdade, dando assim a esperança que esta obra assume querer repor. Apercebamo-nos de que o livro foi inicialmente publicado em 1979, em plena ditadura militar no Brasil.

Não é o meu favorito do autor - mas é brilhante. O início é tenso, o meio, com a história de Antônio Bruno, é sensual e apaixonante; e o final, o final tem o humor que apenas Jorge Amado sabia conferir às suas obras.

4/5

Podem comprar esta edição aqui.

Comentários

  1. Ainda só li 2 de Amado, gostei de ambos: Pais do Carnaval e Capitães de areia. Nâo costumo ler obras depois de a conhecer em telenovela ou filme. Talvez esta seja uma boa dica para voltar a ele

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Compreendo essa relutância, mas os livros que deram telenovelas são maravilhosos! Vi parte da novela da Tieta (depois de ter lido o livro) e achei muito diferente da obra.
      Uma outra dica, de índole mais infanto-juvenil: O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá.
      Ainda não li o País do Carnaval!

      Eliminar
  2. Oito livros deste autor já fazem de ti uma veterana! Eu ainda só li e adorei os Capitães da Areia, há muitos anos, e tentei O Gato Malhado, mas é demasiado fofinho para mim. Mas quero tentar os que tenho cá, claro, o Mar Morto e o Suor.
    Tendo crescido a ver novelas (não havia Netflix!), tenho um grande problema agora: ouço a voz dos autores na minha cabeça com aquele sotaque e não consigo desligar. Não consigo ler Clarice Lispector, por exemplo, o que é uma pena.
    Mas no ano passado consegui ler Os Malaquias da Andréa del Fuego num instante, apesar de não ser grande coisa, e agora estou a ler a poesia da Hilda Hilst, que é simplesmente deslumbrante. Baby steps...
    Paula

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. E ainda há tantos mais por ler!
      Percebo isso d'O Gato Malhado, embora adore; tenta o Mar Morto, a Tieta, a Gabriela... há tanto por onde escolher! Os Capitães é um dos meus livros preferidos de sempre.
      O que dizes das novelas é uma pena (até porque Clarice é maravilhosa), mas recorda-me de uma memória: em 2007, nas festas da minha aldeia, em vez do habitual artista pimba, foram convidados Lucas & Matheus. A mulher do meu primo (tinham-se casado nesse ano) vira-se para mim e diz "parece que estou dentro de uma novela..."
      Nunca li Hilda, e nunca tinha ouvido falar na Andréa. Mas os poucos brasileiros que li, adorei todos. Machado de Assis, por exemplo! Espero que consigas ultrapassar o trauma das novelas :) também cresci a vê-las...

      Eliminar
  3. Óptimo título
    Gosto muito desse teu amor ao Jorge Amado, é bom ter autores de quem gostamos tanto não é? É quase como se fizessem parte de nós, mais do que livros isolados talvez, não sei
    'Se Sampaio Pereira parece o pior candidato possível, fascista, apoiante da ditadura, Waldomiro parece ser apenas um mal menor: as suas obras são adjectivadas como sofríveis, bem como o próprio homem. Mas é necessário fazer frente ao mal, a todo o custo...' quase que parece as eleições presidenciais no mesmo Brasil, em 2018
    'Militares, lutam sem armas - lutam através de palavras, de ideologias. A política entra em campos que não são tipicamente vistos como políticos, o campo da literatura, da Academia. A luta por uma cadeira acaba por se tornar numa luta contra o fascismo, contra a ditadura.' parece super interessante
    Apaixonante post, gostei muito, tenho de ler mais Jorge Amado
    Gosto como dizes que a história de Antônio Bruno é sensual :p

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. O título é especialmente excelente porque: farda do militar, fardão da Academia, camisola de dormir de uma das amantes do Antônio Bruno :p fala, assim, nos vários papéis de várias personagens da obra, eu não fazia ideia antes de ler!
      É verdade, adoro Jorge Amado e, para mim, não é "mais um" autor... quero mesmo ler toda a sua - vasta! - obra, saber mais
      Sim, bom timing para ler o livro - um livro sobre fascismo em ascensão numa organização cultural, no Brasil, sobre tentar preservar a liberdade - e a esperança, porque em Jorge Amado, há sempre esperança.
      A história dele fala nas suas amantes, nas suas mulheres, era um poeta do amor :p

      Eliminar
    2. Qual seria o livro do Jorge Amado que me emprestarias primeiro? :p

      Eliminar
    3. Bem eu realmente já te disse muitas vezes que quero ler Jorge Amado mas também nunca te pedi nenhum livro emprestado directamente e, além do mais, tenho muitos livros teus aqui comigo :p mas o Capitães é sem dúvida um do qual tenho muita muita curiosidade

      Eliminar
    4. Eu costumo emprestar os que me pedes directamente :$ posso levar-te os Capitães em breve, se não te importares de ser o guardião de mais um livro meu :p

      Eliminar
    5. Claro que não me importo, até porque esse livro não pode passar deste ano!

      Eliminar
    6. Poder pode, mas de facto não deve :p

      Eliminar
  4. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderEliminar
  5. Acho que já li tudo de Jorge Amado. Fiz um comentário que por alguma razão não ficou gravado e agora não o consigo repetir. De qualquer modo, em havendo interessados, gostaria de discutir o Autor.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá, Pedro! De facto não há censura neste blog, pelo que os comentários não estão sujeitos a pré-aprovação. Deve ter sido algum erro!
      Ler tudo de Jorge Amado é obra (obra que gostava de alcançar um dia), que ele escreveu uns 40 livros! Ainda tenho uns quantos por ler por casa, infelizmente não é o autor mais fácil de encontrar por estes lados.
      Cumprimentos a'O Mitra!

      Eliminar
    2. Tinhas de mencionar O Mitra, não era?

      Eliminar
    3. Há algum mandamento segundo o qual não posso invocar o nome dele em vão? Hmpf!

      Eliminar
  6. Tinha-os todos em casa (com excepção das peças de teatro), o meu pai era grande admirador do Autor. Li-os na adolescência e depois fui relendo. Gosto da escrita entremeada, sincopada com vírgulas, em forma de samba-canção. Nunca sabemos que emoção vem na palavra seguinte. Vi aí referido num comentário o País do Carnaval. Esse livro faz parte de uma espécie de trilogia que inclui o Suor e o Cacau. É uma espécie de introdução ao Jubiabá, do "herói" António Balduíno. É nesta altura que o Jorge Amado descobre a sua "voz". Um excelente livro. Mas a obra-prima é o Capitães da Areia, o melhor livro de Jorge Amado. O meu favorito é o Pastores da Noite e o mais bonito é o Dona Flor e seus dois maridos. Menção mui honrosa para o Tenda dos Milagres, que tem ensinamentos muito bons sobre como se pode, ou deve, ser duas pessoas misturadas numa só, como bem explica Pedro Archanjo. Depois temos também pequenas delícias como a Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água, ou o Velhos Marinheiros, ou até este Farda Fardão Camisola de dormir.
    O amigo Mitra também aprecia o Jorge Amado, e as suas referências à honorabilidade da vida das meretrizes. E é isso. Hasta

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sorte imensa - recomendo, já agora, "O Amor do Soldado", peça sobre Castro Aires (ainda tenho de ler o ABC). Não tenho o Suor nem o Cacau, mas tenho o Jubiabá e o País do Carnaval. Preciso de (ou devo) ler nalguma ordem específica?
      O Capitães da Areia figura nos meus livros preferidos de sempre (mas o Pedro Bala não é a minha personagem preferida - é o Pirulito), que reli várias vezes. Gostei muito da Dona Flor, da Gabriela e da Tieta. Li também o Mar Morto, o Gato Malhado e a peça acima mencionada. Tenho também, ainda por ler, Tenda dos Milagres, A Descoberta da América pelos Turcos, o ABC, e a trilogia dos Subterrâneos da Liberdade. Tenho um longo caminho a percorrer.

      Eliminar
    2. Eu tenho o país do Carnaval, suor e cacau no mesmo volume. Não acho que haja uma ordem necessária para ler Jorge Amado. O jubiabá e o tenda dos milagres são óptimos. Não gostei tanto do descoberta da América pelos turcos.

      Eliminar
    3. Preciso de ler os que tenho, definitivamente!

      Eliminar
  7. Vou à cata deste esta semana, na Feira!

    ResponderEliminar

Enviar um comentário