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Princípio de Karenina

Possivelmente a minha última tentativa na obra de Afonso Cruz (sou capaz de dar umas chances às Enciclopédias, vá).


Meio por desafio da Rita, li, já em Novembro, a obra mais recente de Afonso Cruz. Estou a "dever-lhe" esta review há meses e aposto que entretanto ela até já se esqueceu.

Princípio de Karenina tem este título pois, aparentemente, o começo de Anna Karenina fala nas semelhanças (ou falta delas) das famílias infelizes, mencionado já em Ada, de Nabokov (dois livros que tenho na estante e que nunca li). É narrado por um homem, contando a sua vida à sua filha que, segundo nos revela, não fala a mesma língua que ele - mistério que se irá desvendar no final da obra.

Entre secções do livro, algumas imagens, a preto e branco, reminiscentes da capa.

O narrador, cujo nome não me recordo (é-nos sequer dado?) tem a sua vida e personalidade formadas por dois factores: um pé boto (qual Peter Carey - também aqui há uma mãe que acaricia a deformidade); e o medo que o seu pai lhe incutira, desde cedo, pelo estrangeiro e pelo exterior.

E toda a gente sabe que o medo é próximo do desejo.

– Nunca saia do seu país, menino, nunca saia de casa mais do que o estritamente necessário, que é perigoso – Voltou a fechar os olhos e a levar o polegar e o indicador às pálpebras. – É muito perigoso – sublinhou, com os olhos fechados. – Se precisar de alguma coisa de fora, mande vir pelos correios. Sente-se à lareira, que não há nada melhor, nem mais importante.

Mas o pai morre, a vida continua, o pé boto não serve de muito na narrativa sem ser para o impedir de ser destacado para a guerra, levando-o a um casamento pouco feliz com a Fernanda da Farmácia - uma vitória sobre um rival (um outro pretendente da moça) que acaba por não saber a grande coisa, porque "ela não presta". O que quer que isso significasse.

Há um amigo do narrador, o Dois Metros, que tem cerca de 1,60m (a alcunha ficara após um surto de crescimento prometedor em criança), que é a personagem mais interessante do livro, por motivos que (felizmente?) não são explorados, e que não irei adiantar por aqui. Os dois discutem frequentemente, por motivos geralmente parvos, o que aligeira o livro (tornando-o menos pretensioso, talvez).

A pergunta só fazia sentido se a escolha fosse limitada. E, para mim, era. Havia as mulheres adequadas ou as outras. Eu preferia as adequadas, que correspondessem à descrição paternal, a quaisquer outras.
- A da papelaria - sugeriu o Dois Metros.
A da papelaria nem sequer se colocava como hipótese.
- A da papelaria não gera futuro.
- Tens razão. Talvez devas esperar. Casar para quê?
- Ter filhos, família, sentar-me à lareira.
- Por vezes, soas igual ao teu pai. E o amor?
O amor era cheio de janelas abertas, correntes de ar, milhões de bactérias, fonte de medos, milhões de deimos, o amor podia destruir as paredes que erigíamos com tanto esmero, toda a ética, deixar-nos à mercê do insólito, do inesperado, do horror da surpresa. A minha noção de amor, na juventude, era uma noção de propriedade. (...)

E depois há o toque bastante How I Met Your Mother da obra, que é quando chega a mãe da criança do narrador, que não é a Fernanda, mas outra, que vem do estrangeiro aterrador, que lhe abre portas, horizontes, que o conquista quando menciona a sua proveniência, precisamente o local proibido que o seu pai ensinara como sendo perigoso.

Passados tantos anos, ainda sinto um sabor estranho na boca quando pronuncio a palavra que a tua mãe disse na sala, no dia em que a conhecemos, a palavra que começou o derradeiro ataque contra o edifício que eu construíra com os blocos de pedra da educação paterna.

Tal como n'Os Livros que Devoraram o Meu Pai: que raio de final foi este?

Senti que o livro era promissor; muito mais interessante e tolerável do que o acima mencionado, mas o final, mais uma vez, arruinou para mim a obra. Foi apressado, inesperado (não num bom sentido), demasiado impossível e apresentado de modo demasiado casual. Acrescento que, não obstante um certo pretensiosismo, estava a apreciar a narrativa até à parte final, em que o narrador tem o encontro derradeiro da sua vida. Não senti que se adequasse; mais uma vez, parecia um final desenhado para um outro livro.

3/5 e estava a ser 4 até ter chegado ao final

Podem comprar esta edição aqui.

Comentários

  1. Mesmo quando tem ideias válidas e bons momentos narrativos, há uma ânsia de mostrar genialidade (que não existe) e conhecimento que tornam a escrita de Afonso Cruz algo penoso de se ler. Cai num pretensiosismo embaraçoso e irritante que arruína até as ideias válidas e os momentos narrativos dignos que por vezes consegue.

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    1. É triste :( porque há ali momentos e ideias com potencial, mas depois... fica aquém, precisamente por tentar ser mais ou ir mais longe. Oh well.

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  2. Como te disse, no outro dia acabei de ler o meu segundo livro do José Cardoso Pires e gostei muito mesmo, tão bom
    O primeiro livro que li dele - talvez pelas expectativas, pelo momento, por inúmeros factores - não me disse tanto (embora perceba o porquê de ser considerada uma excelente obra a vários níveis), isto para dizer sou da opinião que se deve, como princípio geral, dar segundas oportunidades
    Aqui não há um 'mas', apenas quero realçar que admiro o teu esforço para com este autor, com as várias tentativas, se calhar um dia lês uma obra dele que te diz muito, nunca se sabe, gosto muito do facto de leres tanto :p

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    1. Terei de ler também um segundo, pois só li "Jogos de Azar", que foi um livro de contos, e achei mediano - confesso até que me recordo muito mal do que li! :(
      Acredito em dar segundas oportunidades, excepto se uma obra for tão "má", ou nos afectar ou impactar de forma tão negativa, que aí sim, não vale a pena. Há autores que não me vejo a reler, por exemplo. Afonso Cruz apenas nunca consegui achar que chegasse às expectativas que opiniões de terceiros me inculcavam. Mas há um que hei de requisitar da biblioteca, porque falam maravilhas, e esse será possivelmente a minha última tentativa!
      Um outro exemplo: o muito popular John Green. Li CINCO! livros dele. Liam-se todos muito bem, motivo pelo qual insisti (tal como Afonso Cruz se lê muito bem, fluidamente). Mas... não é autor para mim :p

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    2. 'Acredito em dar segundas oportunidades, excepto se uma obra for tão "má", ou nos afectar ou impactar de forma tão negativa, que aí sim, não vale a pena.' Concordo plenamente, tanto que o referi como princípio geral e não aplicável a todos os casos :p
      Ah sim o John Green, lembro-me de falares da obra dele; tentaste, a vida continua, há muitos livros felizmente!
      Qual o livro do Afonso Cruz ao qual vais dar mais uma oportunidade?
      Tenho de te emprestar 'A República dos Corvos' do José Cardoso Pires, acho que deste vais gostar :p mas nunca se sabe, essa é também uma das partes giras de todo o processo de leitura

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    3. Eu, por exemplo, ao primeiro Mário Zambujal percebi que não seria a minha cena :p
      Há muitos livros, para todos os gostos, para todas as pessoas!
      É um "Para onde vão os guarda-chuvas", já pré-reservado na biblioteca :p
      Quem sabe, quem sabe :o iremos fazer a experiência, for sure :p

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    4. Isso do John Green é só triste, Bárbara.
      Quanto ao JCP: lê «O Delfim» tipo ontem. Está tão bem escrito!

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    5. Mas não consigo :(
      Tenho edição mega antiga d'O Delfim na estante comunitária cá de casa. Irei lá chegar, prometo!

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  3. Não desgosto de Afonso Cruz, embora também sinta uma certa sobrevalorização promocional sobre ele e em alguns leitores surpreendidos pela forma algo original com que consegue untar meladamente as dificuldades de algumas das suas personagens e já senti que não estruturou as suas obras até ao fim, pelo que deu um final à pressa que não se coadunava com sentido da narrativa.

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    1. É precisamente isso: também não desgosto, mas fica-me muito aquém das maravilhas que ouço, e prefiro, talvez, dedicar o meu tempo a outras leituras. "Untar meladamente" é uma expressão que se aplica muito bem - e concordo perfeitamente com a falta de estrutura, explícita nos finais apressados e que parecem pertencer a uma outra ideia. É precisamente isso que me apoquenta, em especial.

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  4. Nem acredito que vou ter de requisitar esta obra em breve para conhecer esse final tão mau! Não sei se consigo resistir. Estás a precisar de umas férias do Afonsinho, não? Umas longas férias! :-)
    Acabei mesmo por ler um livro infantil dele, A Contradição Humana, e gostei muito. Mas como é um autor que me caiu no goto, é mais fácil apreciar, acho eu.
    Paula

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    1. Haha ansiosa para saber a tua opinião sobre o final! Pareceu-me tão... não parte do livro.
      Talvez :) mas esta leitura já foi em finais de Novembro (a review é que pronto, chegou agora), entretanto tenho-me dedicado a outras andanças!
      Talvez o infantil me apele mais... mas agora, só da biblioteca!

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