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Nada

Faço sempre questão, em viagem, de comprar um livro.


(algo que não aconteceu em Paris 2010, Salamanca 2015/2016 ou Paris 2015, únicas excepções)

Sendo o objectivo literário da minha curta passagem por Madrid a visita à Librería Mujeres, era claro que a obra contemplada como recuerdo seria um livro escrito por uma mulher. Não tendo, ainda, lido o livro de Almudena Grandes comprado em Sevilha (perdoa, Ana! Mas fica este para o teu projecto de ler espanhóis em Abril), achei que deveria optar por uma autora diferente; e foi assim que a escolha caiu sobre Carmen Laforet.

Carmen Laforet não era uma autora que eu conhecesse de antemão. O livro é sobre Andrea, uma rapariga de 18 anos, órfã, que vai viver para Barcelona com a avó e os tios maternos, na década de 1940, após a Guerra Civil Espanhola, na Calle de Aribau. A Barcelona que Andrea encontra está pobre, com a guerra; e mesmo a casa familiar da qual tinha vagas memórias está transformada numa casa degradada, num cenário de pobreza, repleto de segredos, crueldade e maldade, especialmente após a morte do patriarca, o avô de Andrea.

Nunca estive em Barcelona, confesso. Pelo Google Maps, a Calle de Aribau (ou Carrer Aribau) é muito longa, e leva directamente à Universidade, onde Andrea fora estudar. A cidade, actual, é descrita como alegre, vibrante, num drástico contraste com a tristeza, calma e ambiente de vila que nos são descritos por Laforet. As referências concretas à Guerra Civil são poucas: mas a devastação está lá, presente, e personificada também numa família brutal e cheia de demónios: a avó, frágil, a controladora tia Angustias que guarda os seus segredos, Román, o tio que desaparece meses a fio, Juan, o tio pintor casado com Gloria, odiada por Angustias e Román, e cujo único conforto parece ser a avó. Acrescentam-se a empregada, Antonia, e o cão. Todos eles, excepto a avó, guardam segredos, traições, culpas.

O crescimento de Andrea envolve-se em desilusão, numa cidade que desconhece, numa casa que considera suja, no meio de uma família onde não encaixa. A prosa de Carmen Laforet transmite com enorme beleza a juventude perdida e triste de Andrea, que anseia por independência, dos tios e da casa, espelha a sua inexperiência, a sua vontade de viver, e a forma como vê as várias personagens da casa da Calle de Aribau. A própria Andrea assume a sua inocência, e aguenta o abuso emocional da sua família chegando ao ponto de passar fome de modo a poder trazer alguma beleza para a sua vida.

Yo no busco en las personas ni la bondad ni la buena educación siquiera..., aunque creo que esto último es imprescindible para vivir con ellas. Me gustan las gentes que ven la vida con ojos distintos que los demás, que consideran las cosas de otro modo que la mayoría... Quizá me ocurra esto porque he vivido siempre con seres demasiado normales y satisfechos de ellos mismos...

E se a família de Andrea está vividamente descrita, retratada de forma única e complexa, com uma história e um passado, não podemos descartar Ena, a amiga que Andrea faz na faculdade, com quem quer sempre estar e a quem quer sempre impressionar. A relação entre ambas é central à narrativa, desde a forma como Andrea vê Ena (dando a entender talvez mais do que uma amizade platónica), à forma como Ena se insere, depois, na Calle de Aribau.

E depois há Pons, também amigo da faculdade, e todos os que visitam e frequentam o atelier de Iturriaga. Todos estes espaços e pessoas fazem parte da procura de Andrea por si mesma, fazem parte do seu crescimento e aprendizagem.

Me gustan las gentes que ven la vida con ojos distintos de los demás, que consideran las cosas de otro modo que la mayoría.

Mas não acontece muito, ao longo do livro. A verdade é que a obra é mais evocativa de emoções que descritiva de eventos; explora a miséria, o egoísmo, o desespero. Explora as diferenças entre classes sociais. E mostra personagens detestáveis, porém magnéticos, personagens muito reais, que criam um ambiente opressivo em torno da narrativa.

Andrea é uma personagem fascinante, porque emerge da sua inocência, da sua vergonha pela família, porque nos mostra tudo do seu ponto de vista e, ainda assim, compreendemos que tem segredos, que tem os seus próprios preconceitos, que também tem maldade, e não apenas a necessidade de amor e a tristeza que vemos primeiro.

Me parece que de nada vale correr si siempre ha de irse por el mismo camino, cerrado, de nuestra personalidad. Unos seres nacen para vivir, otros para trabajar, y otros para mirar la vida. Yo tenia un pequeño y ruin papel de espectadora. Imposible salirme de él. Imposible libertarme. Una tremenda congoja fue para mí lo único real en aquellos momentos.

Destaco ainda, e novamente, a forma como a Espanha do pós-guerra é aqui descrita não como um lugar tornado feliz pelo Franquismo - vemos uma Barcelona pobre, sem cultura, sem alegria; vemos personagens que falam, todas elas, castelhano, tendo o catalão sido banido; vemos a fome e a degradação em que vive uma família outrora próspera; e vemos, ainda, embora que não directamente, o contrabando.

5/5

Podem comprar uma edição em português aqui.

Comentários

  1. Como assim não conheces Barcelona e conheces Madrid? Espero que já estejas a comprar um bilhete para lá, para as tuas próximas férias! ;-) Depois de tanta beleza, nunca mais vais querer saber de Madrid para nada!
    Espero gostar deste livro tanto como tu. Ainda conto lê-lo até ao final do mês ou no princípio do próximo, quando terminar a outra catalã que se meteu pelo meio, a Mercè Rodoreda.
    Paula

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    1. Fui a Madrid duas vezes, Salamanca três... Sevilha apenas uma. Barcelona é um desejo antigo, mas que ainda não está confirmado para o futuro próximo, infelizmente!
      Gostei muito deste livro, mas aviso desde já que é um livro lento. Quanto à Mercè, confesso que nunca ouvira falar nela, mas vou já anotar o seu nome!

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    2. Quero tanto ir a essas cidades e a muitas outras de Espanha que ainda não conheço, mas estou à espera que o mais novo ganhe a minha pedalada! :-)
      Desde que as personagens sejam boas, a lentidão não me incomoda. Nunca cumpro o que planeio, por isso, já o comecei a ler. Coitada da Andrea numa casa tão imunda, com uma família de alucinados...
      Paula

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    3. Compreendo, ele há de lá chegar :) fico à espera de saber o que achas do livro!

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  2. Estás mais do que perdoada, Bárbara! Esta obra é densa como poucas que li e mexeu muito comigo, sobretudo pela evocação do pós-guerra civil (que se infiltra por todos os poros da obra) e pela busca de identidade de Andrea no caos que é a sua vida pessoal e familiar!
    Pegando nas palavras da Paula, Barcelona te va a encantar, seguro, aunque, en mi opinión se ha convertido en una ciudad demasiado turística... Aun así merece mucho la pena!
    Gracias, guapa, por haber participado en #enabrilleemosenespañol :)

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    1. A tua grande paixão pela guerra civil! :) gostava de saber mais sobre essa guerra, porque acredito que retiraria muito mais da história. E, ainda assim, surpreende-me que o livro tenha passado a censura da altura!
      Tenho, sim, de ir a Barcelona - mesmo que seja uma cidade actualmente demasiado turística!
      Besitos, Ana :)

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    2. Ora aí está uma bela questão - como é que passou pela censura?...
      A minha "panca" pela Guerra Civil espanhola é quase tão grande como a da Almudena :D Estou a exagerar, claro, porque a autora já confessou a sua obsessão doentia pela temática, a minha não chega a tanto, pois não me leva a estudar a época, só a desfrutar do que encontro sobre a mesma na literatura.
      Barcelona será sempre mágica!
      Besitos, guapa!

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    3. Curiosíssima para ler Almudena! Um dia hei de chegar à sua série sobre a Guerra Civil :)

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  3. Livros nunca são demais :) Beijinhos*

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  4. Livros são óptimos recuerdos :p E como alguém referiu nos comentários, nunca são demais!
    Gostei muito de ler este post, quero ler este livro um dia, até porque gosto muito de Espanha e do tema Guerra Civil Espanhola
    Temos mesmo um dia de ir a Barcelona Ba, prometo que iremos!
    'A verdade é que a obra é mais evocativa de emoções que descritiva de eventos; explora a miséria, o egoísmo, o desespero. Explora as diferenças entre classes sociais. E mostra personagens detestáveis, porém magnéticos, personagens muito reais, que criam um ambiente opressivo em torno da narrativa.' gosto disso, é diferente

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    1. Oh mas já começam a ser demais sim! :(
      Prometes? :o
      É um livro diferente de facto, a narrativa em si não tem muito a acontecer, mas as personagens são tão ricas!

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    2. É questão de não comprares tanto fora dessas ocasiões especiais p.ex. :p
      Sim Ba, já o prometi!

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    3. É o que estou a dar o meu melhor para fazer! :$

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