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O Estrangeiro

Uma segunda leitura, numa segunda língua.


Li este livro originalmente em 2011, aquando do meu mestrado. Li em inglês, porque na altura fazia-me sentido ler livros franceses em inglês. Em 2017, em Paris, adquiri uma adaptação desta obra, em novela gráfica. Quando a minha irmã me ofereceu esta edição, senti que era uma deixa para reler, já este ano.

Mersault é um modesto homem trabalhador, que vive em Algiers. O seu dia-a-dia é vivido com indiferença e incapacidade de manifestar quaisquer emoções - e é com essa mesma apatia que recebe a notícia da morte da sua mãe, que vivia num lar há já alguns anos, como aprendemos numa das aberturas de livros mais famosas de sempre.

(a par de Lolita, 1984 ou Moby-Dick, por exemplo)

Hoje, a mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem.

A partir daí, Mersault, neste curto livro, passa por várias situações: tem de lidar com o chefe, de modo a poder ir ao funeral da sua mãe (pedindo desculpa, alegando não ser sua culpa, num momento de ironia brilhante sobre como a morte se torna num inconveniente); acaba por ir ao funeral da mãe, chocando os funcionários do lar com a sua apatia, com o seu comportamento inesperadamente calmo.

Esta parte é muito relevante, por ser o primeiro momento a levantar questões sobre as nossas emoções: até que ponto são intrínsecas, reais - até que ponto são criadas pela expectativa dos outros, a expectativa daquilo que devemos demonstrar, em cada momento ou situação? E, assim - a forma como terceiros ditam a forma como vivemos a vida. É-nos constantemente dito o que está certo, o que é "ser humano" e, sem saber, todos impomos certas características (e emoções) aos outros, à medida que nos são, também, impostas.

Mersault vai nadar com Marie, uma amiga/namorada casual. Convida-a para ir ao cinema, e ela pede para ir ver uma comédia da qual toda a gente fala. Seguimos a rotina de Mersault, a sua vida em casa, com Marie, as suas amizades e relações com um vizinho, até o ponto inesquecível em que, na praia, mata o árabe. Com a mesma apatia de sempre. Estava calor e ele não conseguia pensar.

Esperei. A ardência do sol queimava-me as faces e senti o suor amontoar-se-me nas sobrancelhas. Era o mesmo sol do dia em que minha mãe fora a enterrar e, como então, doía-me a testa, sobretudo a testa, e todas as suas veias batiam ao mesmo tempo debaixo da pele. Por causa desta queimadura que já não podia suportar mais, fiz um movimento para a frente. Sabia que era estúpido, que não me iria desembaraçar do sol simplesmente por dar um passo em frente. Mas dei um passo, um só passo em frente. E, desta vez, sem se levantar, o árabe tirou a navalha da algibeira e mostrou-ma ao sol. (...)

E é sem emoção que é preso, que segue o processo judicial, aceitando, calmamente, a inevitabilidade do seu destino, estranho, alienígena às manifestações emocionais julgadas "normais" nos humanos. Porque, constantemente, lhe é dito que ele devia ter vivido, ou agido, de certa forma: é-lhe dito pelo juiz, pelo advogado, pelo padre. Ir ver uma comédia com Marie, por exemplo: comportamento inaceitável, no seguimento da morte da mãe. Como tal, por não se conformar aos comportamentos e emoções esperados, é marginalizado, considerado desumano.

E, em consequência, todos os que o julgam são mais humanos, por serem capazes de o fazer, justificando assim as suas vidas. A prisão retira a liberdade a Mersault, por ter cometido um crime. Mas não nota a diferença entre a sua vida em liberdade e sem liberdade. Seremos livres, quando condicionados pelos outros?

Disse-me, antes de mais nada, que me pintavam como tendo um carácter taciturno e fechado, e quis saber a minha opinião a este respeito. Respondi: "É que, como nunca tenho quase nada a dizer, prefiro calar-me."

Quantas vezes nos sentimos deslocados ao entrar numa sala, nos sentimos estranhos (estrangeiros) perto dos demais? É um livro muito curto, mas com muitas questões.

5/5

Podem comprar esta edição aqui.

Comentários

  1. Gostei muito deste livro que só li no mês passado, depois de uma vida a adiá-lo, porque eu e a literatura francesa não nos damos lá muito bem (à excepção da Simone e da Duras) e eu e a filosofia, então nem se fala...
    As pessoas estão sempre a julgar-se umas às outras só pelas aparências, pelo pouco que vêem delas, e aqui isso é levado ao seu expoente máximo, ao absurdo.
    Matar-se um homem e ser-se criticado porque se fumou um cigarro, ou se bebeu um café no funeral da mãe é mais do que ridículo, mas é mesmo assim!
    Leste mais alguma obra dele?
    Paula

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    1. Eu já o tinha lido em 2011, anos de mestrado (em inglês! Algo que hoje me parece meio absurdo) e, com a novela gráfica na estante e a oferta desta edição pela minha irmã, tua homónima, veio a releitura :) confesso que gosto de literatura francesa - da não imensa que li! Quais as tuas outras tentativas?
      Bebeu um café no funeral da mãe - eu, por motivos profissionais, faltei ao funeral da minha avó. O que é que isto fará de mim? Serei, por isto, pior pessoa?
      Li "L'été", apenas. É um conjunto de resenhas sobre a Argélia, um relato de uma viagem, não particularmente memorável. Li-o porque o encontrei a pouco mais de 1 Euro na FNAC, e foi na altura em que me quis desafiar a ler em francês - pelo que o pouco memorável pode dever-se a eu não ter compreendido muito :) mas quero ler mais! O la chute, o la peste, o sisyphe...

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    2. Porque eu também gosto de absurdos, ouvi o audiobook em inglês, apesar de o ter uma edição em português, e achei a narração impecável.
      Ah, este belo nome já em extinção! :-)
      Eu também tenho cá A Queda, mas cruzo-me frequentemente com os outros que referiste.
      Franceses que não resultaram comigo: Yourcenar, Modiano, Sagan, Romain Gary... Une vraie tache! ;-)
      Paula

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    3. Nunca ouvi um audiobook - não me sinto com concentração suficiente para!
      Li Yourcenar na escola (Salvação de Wang-Fo) e desde então que fiquei de pé atrás com ela... não gostei. Também não fiquei fã do Madame Bovary (e os contos que li do Flaubert foram uma atrocidade de tão aborrecidos!), e desisti do Stendhal a meio. Da Sagan, li o Bonjour Tristesse e gostei muito, mas li com 18 anos e acho que com 18 anos o livro faz sentido. Tenho o Un Certain Sourire para ler. Entre outros, gostei muito do Candide do Voltaire que também já li em duas línguas, do Choderlos de Laclos, da telenovela que é o Trois Mousquetaires (quero ler o Monte-Cristo), adoro o único que li de André Gide, do Fantasma da Ópera. Gostei do Cyrano! E tenho uma imensidão de franceses na estante que, por estarem em francês, adio ler :)

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    4. Os franceses que agora tenho para ler (em PT!) são quase todos clássicos, Balzac e Maupassant, porque nesses ainda tenho esperança. Gostei do Germinal do Zola, que é a história mais miserável de sempre,
      e também das Ligações Perigosas, que ando cheia de vontade de reler.
      A Madame Bovary em teoria podia agradar-me, mas só ouço dizer mal, por isso, continua por ler. :-(
      Paula

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    5. do Maupassant li apenas um conto, Boule de Suif, e fiquei muito bem impressionada! chegarei, com tempo, ao Bel-Ami. o Liaisons Dangereuses é outro que li em duas línguas :) pelo que já está relido, e adoro!
      um dos primeiros posts deste blog é a minha opinião do Madame Bovary... se quiseres mais uma opinião com algumas reticências!

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  2. Um dos poucos livros que reli e que me apetece sempre reler, uma maravilha. Por acaso há uma réplica a essa obra já deste século e escrita por um argelino, que a narra do lado da família do árabe morto. Não tem a genialidade de Camus, mas é interessante ler depois de se ter lido "O estrangeiro" aqui vai o link de quando falei dessa reação
    https://geocrusoe.blogspot.com/2015/10/meursault-contra-investigacao-de-kamel.html

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    1. Este é um livro excelente, que me faz querer ler mais de Camus. Não conhecia essa obra, mas irei anotar - acho interessantes as narrativas "paralelas", como o Vasto Mar de Sargaços de Jean Rhys perante Jane Eyre de Brontë.

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  3. Quero muito ler este livro e achei interessante haver a graphic novel :) Vou procurar por ela aqui em França. Não gosto muito de ler em francês, mas graphic novels não me importo.

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    1. Em alternativa, a Babel publicou em português :) eu gosto de ler em francês, mas não tenho muita facilidade!

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  4. Não li mas fiquei com muita vontade de ler (em português).

    Sonha mas Realiza

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  5. Interessante referires que a obra tem uma das aberturas de livros mais famosas de sempre, por acaso quando comecei a ler o livro também achei forte o início!
    Ainda não li Lolita, 1984 ou Moby-Dick no entanto, tenho comigo dois deles mas ainda não aconteceu, tenho bastante curiosidade para com os três no entanto; e com isto ocorreu-me que também poderia ser um tema de um post a explorar, do género: as aberturas de livros mais famosas de sempre, os finais mais famosos de sempre, inesquecíveis ou inesperados! Ou simplesmente que gostaste mais, os que cresceram mais ao longo da narrativa ou estavam a ser bons mas depois desiludiram, não sei :p
    'Hoje, a mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem.' damn
    Gosto como realçaste toda a parte do lidar com o chefe, por acaso achei muita piada a esse momento, e toda a dinâmica com os funcionários do lar, que parece que esperam sempre que uma pessoa vá para lá a chorar baba e ranho, tipo toda a gente tem maneiras de reagir diferente, se bem que o Mersault é um caso mesmo atípico
    'Esta parte é muito relevante, por ser o primeiro momento a levantar questões sobre as nossas emoções: até que ponto são intrínsecas, reais - até que ponto são criadas pela expectativa dos outros, a expectativa daquilo que devemos demonstrar, em cada momento ou situação? E, assim - a forma como terceiros ditam a forma como vivemos a vida. É-nos constantemente dito o que está certo, o que é "ser humano" e, sem saber, todos impomos certas características (e emoções) aos outros, à medida que nos são, também, impostas.' exacto, concordo
    Alto spoiler com o árabeee, não para mim claro que li o livro :p e gostei bastante! E por ter lido o livro é que estou chocado por não falares mais do vizinho, que é para mim uma peça chave, a muitos níveis

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    1. 'E é sem emoção que é preso, que segue o processo judicial, aceitando, calmamente, a inevitabilidade do seu destino, estranho, alienígena às manifestações emocionais julgadas "normais" nos humanos. Porque, constantemente, lhe é dito que ele devia ter vivido, ou agido, de certa forma: é-lhe dito pelo juiz, pelo advogado, pelo padre. Ir ver uma comédia com Marie, por exemplo: comportamento inaceitável, no seguimento da morte da mãe. Como tal, por não se conformar aos comportamentos e emoções esperados, é marginalizado, considerado desumano.' excelente apontamento sobre o que para mim é o livro, sobre a relação humana; no entanto quando li a parte do cinema, 'ainda por cima' comédia, admito que me senti mal com isso, o que diz isso de mim? Também sou um estereótipo? É verdade que o Mersault não expressava muito os sentimentos, independentemente de os ter ou não, mas não sei, até porque se tivesse em casa sozinho a ver tv e na tv por acaso tivesse a dar uma comédia já me sentiria de outra forma provavelmente, porque ele aí estava em casa, sozinho, não em público, no entanto não é o que os outros poderiam achar, é um sentimento interior, como que um pesar de consciência que não sei explicar, percebes?
      'Mas não nota a diferença entre a sua vida em liberdade e sem liberdade. Seremos livres, quando condicionados pelos outros?' oh Ba, escreves tão bem...
      Lembro-me desta parte muito bem sim: 'Disse-me, antes de mais nada, que me pintavam como tendo um carácter taciturno e fechado, e quis saber a minha opinião a este respeito. Respondi: "É que, como nunca tenho quase nada a dizer, prefiro calar-me."' é legitimo
      Uau, que post, o livro é muito bom também, que maravilha ter podido ler ambos

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    2. Oh, há muita coisa na internet sobre livros com aberturas famosas :$ não iria acrescentar nada :p

      A verdade é que Mersault foi contra todas as expectativas de pesar, luto e tristeza que tinham - e esse evento, a morte da mãe, completamente não relacionado com o homicídio, acabou por pesar na parte do "juízo de carácter" dele. Logo aí, era-lhe imposto um modo de ser, o qual ele não cumpria...
      Não foquei no vizinho porque, apesar de ser o vizinho que "levou" Mersault até ao árabe, não creio que o vizinho tenha sido importante no gesto; por isso, não o achei uma peça chave e gostava de saber mais sobre essa tua opinião :p
      É engraçado, porque eu, das duas vezes que li o livro, não achei absolutamente nada sobre a questão da comédia - lembra-te do último concerto que fomos ver, por exemplo... fosse em casa, no cinema, sozinho ou acompanhado, não achei nada de extraordinário nesse gesto. Percebo o que dizes, mas não há uma só maneira de fazer o luto; e não acho que a distracção, o ir ao cinema, vá "contra" isso.
      Oh, obrigada :$

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