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Vozes de Chernobyl

Dei prioridade a este livro porque decidi que quero ver a série (ainda não vi).


Svetlana Alexievich já estava na minha wishlist há algum tempo, e aproveitei uma promoção na Feira do Livro de Lisboa para adquirir esta obra, que não relata os eventos de Chernobyl, mas sim reúne testemunhos daqueles que foram afectados pelo desastre: liquidadores, viúvas de liquidadores e bombeiros, aqueles que viviam na área e foram evacuados, aqueles que viviam na área e ficaram para trás, crianças nascidas antes e depois do desastre...

A autora, jornalista, passou três anos a entrevistar várias pessoas que, de um modo ou de outro, tinham estado envolvidas em Chernobyl. As suas palavras são-nos apresentadas sem cortes, sem comentários por parte de Svetlana. É um livro devastador, mas também repleto de beleza. Através destas entrevistas orais (as "vozes" do título), tanto a pessoas comuns quanto a algumas pessoas que viram novas responsabilidades nas suas áreas (cientistas, políticos locais, médicos, professores...), a autora mostra a confusão, a raiva, a perda, mas também o orgulho saídos do desastre de Chernobyl. As histórias são trágicas.

Muitos dos locais afectados pelo desastre largaram as suas vidas, os seus pertences, as suas casas, sem saber que nunca voltariam. Abandonaram casas, empregos, animais de estimação, bicicletas e casacos acabados de comprar. O pouco que levavam era-lhes confiscado, enterrado. Casas e aldeias inteiros foram soterrados.

E, ainda assim, houve quem voltasse, para ir buscar as suas coisas. Um homem que foi recuperar a sua porta de entrada, onde, tradicionalmente, os mortos da sua família eram deitados. E houve quem voltasse de vez, rejeitados pelo restante mundo, etiquetados de "chernobylianos", preferindo uma ameaça fantasma aos medos e ataques constantes. E ainda houve quem aqui se viesse refugiar, fugido de zonas de guerra. O liquidador que sobreviveu, que deitou tudo fora menos o boné, porque o seu filho o queria usar, brincar com ele. O seu filho que, mais tarde, desenvolveu um tumor no cérebro. E morreu.

Ninguém compreendia a radiação, a linguagem utilizada, o impacto de algo que não se via. E, ainda hoje, não se compreende totalmente.

Novamente, não é um livro que detalhe o acontecimento, o desastre em si; não oferece explicações, conclusões, não responde a perguntas. Não há uma explicação objectiva ou racional do como, do porquê, do dia 26 de Abril de 1986. Mas é um livro importante, por nos mostrar não só a tragédia humana implicada no desastre em si, mas a suas repercussões. Doenças, problemas congénitos, a perda de maridos, filhos, o suposto heroísmo suicida dos que foram tentar parar a propagação da radiação, não sabendo que as consequências seriam ainda piores. Os inúmeros significados de "Chernobyl" para quem o viveu.

Pessoas que, tendo sido expostas à radiação, têm medo de ter uma família, de ter filhos. Crianças que sabem que têm cancro por causa do envolvimento dos seus pais no desastre. Crianças que vêm os seus melhores amigos morrer, um após o outro. E, em contraste, a ideia que ir "limpar" a zona era a coisa certa, máscula, a fazer. A ideia comunista, da cultura soviética, que a comunidade era mais importante que o indivíduo (e a forma como este livro dá um lugar a essas vozes individuais). A forma como o governo tentou minorar o desastre, apesar de utilizarem equipamento de protecção...

Os relatos com maior impacto foram o primeiro e o último. Lyudmilla Ignatenko, viúva de um bombeiro de Pripyat, parte do grupo dos primeiros a reagir, que morreu devido à exposição aguda à radiação, 14 dias após o desastre. Então grávida, tendo tentado esconder o facto e tendo acompanhado o marido até o fim, viu-se, repentinamente, sem marido e sem filho. Valentina Panasevich, viúva de um liquidador que definhou durante anos, que amava o seu marido intensamente e vive devastada com a sua morte.

Svetlana Alexievich dá voz aos que morreram no desastre, aos que ainda vivem com as repercussões do mesmo e aos que vivem nas áreas afectadas. É uma leitura emocionante, que dá um lado humano a uma tragédia moderna, tecnológica.

5/5

Podem comprar esta edição na wook ou na Bertrand


Comentários

  1. Lê também, dá mesma autora, A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, sobre as mulheres que lutaram no exército russo na 2a Guerra Mundial. É arrasador.

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    1. Na lista :) este foi o meu primeiro, mas os outros dela virão!

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  2. Este livro revoltou-me imenso. A ignorância, aquela fidelidade cega à pátria, os animais, a vergonha de se dizer que se é da zona para não afastar possíveis pretendentes...
    Ainda assim, não gostei tanto como tu. Acho que a Svetlana não devia apenas recolher testemunhos, mas também contextualizar as coisas tanto política como geograficamente. O leitor interessado pode sempre ir informar-se, mas assim não posso considerar o trabalho dela tão completo como pretendo.
    Paula

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    1. Sim, é muito revoltante - não só a fidelidade cega, da altura, mas como alguns ainda a conseguiam manter... a parte dos animais foi horrível. E a forma como alguns aceitavam a sua origem, o facto de potenciais, futuros filhos, terem problemas de saúde tremendos?

      Compreendo essa parte - nesse aspecto, não é um trabalho completo, porque foca apenas o lado "humano" do desastre, em vez de explicar ao certo o que aconteceu, o que se sabe do que levou a esse momento (e, tendo em conta o local onde foi - saber-se-á mesmo?). Mas o lado humano tocou-me muito!

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  3. Não deve ser um livro fácil de ler. Apesar de já ter ouvido falar nele ainda não tive coragem de ler.

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    1. Não é fácil, mas vale muito a pena! Mas é um facto - é precisa coragem.

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  4. Adorei esse mas ainda gostei mais do "A Guerra não tem rosto de mulher", talvez por ter sido o meu primeiro contacto com a Svetlana.

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    1. Recomendação anotadíssima, a adquirir para o ano! :)

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  5. Soube do livro logo após ver a série, e já o estou para o ler há muito tempo, mas ainda não peguei nele por saber que vai ser muito pesado. Para já, estou nas leituras leves de verão :).
    Beijinhos
    Blog: Life of Cherry

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    1. Ainda não tive tempo ou paciência de me dedicar à série, mas depois do impacto deste livro, será para breve. As minhas leituras de verão têm alternado entre o leve e o pesado :)

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  6. Quero muito ler este livro! E depois/ou antes ver a série claro
    Acho que devias ler a novela gráfica que tenho Ba, é muito boa também
    'Pessoas que, tendo sido expostas à radiação, têm medo de ter uma família, de ter filhos.' assustador
    Gostei muito do post

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    1. Gostei muito do livro, achei excelente, muito humano! Acho que irias gostar, e quero ler a novela gráfica também!
      Muitos momentos foram assustadores, muitos apenas uma espécie de despertar para uma realidade que, sendo tão próxima, nos é tão distante. É muito marcante.
      Ansiosa pela série :p

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