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Cry, the Beloved Country

Desafio para Julho: ler um clássico africano ou asiático, fugindo assim ao cânone Ocidental.


A minha escolha para o desafio deste mês recaiu em Cry, the Beloved Country, livro de 1948 de Alan Paton por ser um dos dois livros que eu tinha, ainda por ler, elegíveis para o desafio. Foi um dos poucos que escolhi de antemão para o efeito (o de Setembro é outro). Comprei este livro por uma ninharia no Awesome Books há já alguns anos, e estou muito feliz por me ter finalmente dedicado a esta leitura.

Talvez seja um livro especialmente interessante de ler à luz dos eventos recentes; fala-nos da África do Sul de imediatamente antes de o Apartheid ter um nome oficial, mas quando o regime de segregação já existia na prática; era já a minoria branca que detinha o poder, a terra, o dinheiro, a justiça.

A narrativa acompanha a viagem de Stephen Kumalo, pároco numa terra pequena, rural e extremamente pobre da África do Sul, que recebe uma carta de um colega pároco de Johannesburg, relativa ao estado de saúde da sua irmã; pegando nas poucas poupanças que fizera com a sua esposa, decide partir e saber do paradeiro não só da irmã, Gertrude, mas do seu irmão John e do seu filho Absalom.

Kumalo é Zulu, e anglicano. A sua comunidade agrícola é composta praticamente apenas de "nativos". Muitos dos seus conterrâneos, da sua tribo, foram para a cidade e nunca mais voltaram, nunca mais deram notícias. Aquilo que Stephen Kumalo descobre na cidade grande não é fácil: além de ser burlado à chegada, descobre que a sua irmã, que partira em busca de um marido que não dera mais notícias, foram corrompida pelos hábitos da cidade e pela necessidade de dinheiro, caindo numa vida de alcoolismo e prostituição, não obstante o filho pequeno; o irmão adoptara aquele novo modo de vida e lutava por uma ambição política, defendendo a luta dos mineiros por salários justos e o fim da exploração, com palavras consideradas perigosas pela população branca; e o filho tinha ingressado numa vida de pequenos crimes, indo de local em local, "obrigando" Kumalo a seguir rastos e pistas, passando por centros de reabilitação.

Kumalo sofre.

I have never thought that a Christian would be free of suffering, umfundisi. For our Lord suffered. And I come to believe that he suffered, not to save us from suffering, but to teach us how to bear suffering. For he knew that there is no life without suffering.

Tinham perdido, todos eles, aquela que seria a pureza da cultura da sua terra natal. Isto pode ser um retrato problemático - será o "nativo" demasiado burro, infantil, para conseguir resistir às enormes tentações da cidade grande e da civilização? 

It suited the white man to break the tribe, he continued gravely. But it has not suited him to build something in the place of what is broken.

Ou será que todo um sistema de valores foi arrasado para dar lugar a um vazio que não se soube construir? Há observações sociais e sociológicas muito interessantes ao longo do livro: além das dificuldades de transporte, de habitação, há a questão do sistema que mantém o nativo pobre, sem capacidades, com salários que mal permitem a subsistência, de modo a manter o sistema mineiro e agrícola em andamento; tirando as melhores terras (os nativos seriam a grande parte da população, mas 90% das terras teriam proprietários brancos), dando os piores empregos, não dando espaço para o ensino, de modo a que houvesse sempre uma fonte de mão de obra barata e mal qualificada. Jovens quase obrigados a sair das suas terras, a ir para longe das suas famílias, indo trabalhar para cidades que não lhes dão condições de criar as suas próprias famílias, de ter uma carreira, de ter uma vida digna.

Tiram-lhes o sistema tribal e quase que os empurram para uma vida de crime.

E o crime acaba por tomar um papel central nesta obra, mas talvez o mais interessante sejam mesmo estes efeitos do Apartheid, ainda que sob um outro nome, na sociedade. Não só o que pode ou não ser feito, os costumes, os medos e as esperanças - a pobreza e a separação que continuam ainda hoje, não obstante a dissolução do sistema -, mas as várias consequências da colonização.

Racismo, elitismo, sentimentos imperiais, segregação, quebras abruptas de sistemas de valores - todos estes temas são aqui explorados, mas a obra tenta instigar a tentar fazer algo para mudar. Apela à bondade, em cada um dos seus momentos, ao melhoramento.

But there is only one thing that has power completely, and this is love. Because when a man loves, he seeks no power, and therefore he has power.

A história da África do Sul é profundamente complicada, como todos sabemos. O livro, como o título indica, vai um pouco para além da história aqui narrada, algo simples, e retrata o amor por um lugar - por um país, por uma terra, por África - apesar das atrocidades cruciais que o caracterizam.

Cry, the beloved country, for the unborn child that's the inheritor of our fear. Let him not love the earth too deeply. Let him not laugh too gladly when the water runs through his fingers, nor stand too silent when the setting sun makes red the veld with fire. Let him not be too moved when the birds of his land are singing. Nor give too much of his heart to a mountain or a valley. For fear will rob him if he gives too much.

Será importante, por fim, notar, que Alan Paton era um homem Sul-Africano branco, com uma posição de privilégio no seu país, e relativamente a muitos dos personagens que escreveu; isto pode ajudar a ler certos momentos do livro como "white saviourism", nomeadamente o final - mas creio que é importante ver além disso, e tentar compreender o quão perigoso era advogar certas ideias na altura. Talvez seja particularmente problemático o facto de Paton, um homem branco, ter escrito do ponto de vista de um negro. Esta obra foi escrita no estrangeiro, e para um público estrangeiro. Embora parta do lado privilegiado do conflito, considero que consiste numa denúncia.

5/5

Podem comprar uma outra edição em inglês na wook, na Book Depository ou na Bertrand; a obra não se encontra traduzida para português. Isto é absolutamente criminoso.

Comentários

  1. Não conhecia, mas promete ser um bom livro!

    Beijos e abraços.
    Sandra C.
    bluestrass.blogspot.com

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    1. Pessoalmente, achei excelente. Pena não estar exactamente disponível por cá...

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  2. Tenho alguns problemas com o termo "white saviour". Um branco racista é o vilão (óbvio, não ponho isso em causa); se for um branco justo e bem formado, que quer que fazer algo de positivo contra a segregação criada pelo vilão, é apelidado com um termo pejorativo à mesma. Não há como ganhar aqui. Ou então é a minha "white fragility" a falar, que também é outro termo que me enerva. :-)
    Eu li a edição da Europa-América, Chora Terra Bem Amada, no fim dos anos 80, que talvez ainda se encontre em alfarrabistas e bibliotecas, e marcou-me muito.
    Já há poucos anos, li o Vale da Ira, uma compilação de contos sobretudo sobre a altura em que o Paton foi diretor de um reformatório, de que também gostei.
    Paula

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    1. Sim, é um bocado preso por ter cão e preso por não ter, não é? Mas percebo que seja um ponto a tocar, dado o livro ter sido escrito por um homem branco que, sim, denuncia uma situação, mas termina a obra exaltando as boas obras do senhor branco que conseguiu "rise above" tudo o que lhe tinha sucedido.
      Ui, edições da Europa-América... já pensaste em reler no original? :) eu comprei este no Awesome Books por uma qualquer pechincha. Mas os preços do Awesome Books andam estranhos - não sei se, com o covid, anda mais complicado em termos de oferta... espero que não tenham alterado o modelo de negócio.
      Eu tenho o "Debbie Go Home", também contos dele, que comprei por coisa de 1€-1,50€ numa espécie de cash converters em Paris :) mas ainda por ler!

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    2. Livros a 1 euro. Suspiro... Acho que no oringal são esses os contos, até me lembro desse da Debbie.
      Os ingleses enlouqueceram com a Covid, decididamente. Também comprava na World of Books, ainda que menos que na Awesome, porque cobram portes por cada livro, mas desde que se encafuaram, puseram tudo a preço de livro novo. À Awesome parece que se lhe acabou o stock, o que até normal, porque se abastecem em bibliotecas e lojas de caridade, e ainda deve estar tudo fechado ou a meio-gás. E os ingleses têm, agora, um método de lidar com os livros muito pouco prático. Quando vais a uma livraria e tocas num livro, tens de ir colocá-lo num carrinho, para o staff pôr a desconfinar. Eu perdia logo a vontade sequer de entrar...
      Paula

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    3. Interessante - hei de ler em breve :)
      E sim, fiz uma compra de sete livros que me ficou nuns 14€... tudo 1-2,50€. Claro que a selecção não era a mais aliciante (muitos livros à la Fabio Lanzoni), mas havia umas quantas pérolas lá no meio.

      Não conhecia o World of Books, mas quiçá quando voltarem a ter preços dos bons os venha a conhecer :) e sim, tenho exactamente essa percepção sobre o Awesome Books, o que é pena (mas bom para a minha carteira, vá, posso aguentar mais uns bons tempos com o conteúdo das estantes, sem comprar 20 livros com a desculpa que fica só 50€ e portanto vale a pena).
      E sim: também me tiraria logo a vontade. Se bem que, em boa verdade, continuo a praticar o mesmo confinamento que em Março/Abril, pelo que não tenho entrado em livraria nenhuma...

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  3. Só de pensar a quantidade de livros incríveis que não estão traduzidos cá...
    Eu vou tentar dedicar este fim-de-semana à minha leitura para o desafio! Será ou o Sultana's Dream, ou o The Pillow Book :)

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    1. É terrível, não é? Ou isso ou (como é afinal o caso deste), traduções esgotadas e obras esquecidas... muitas delas magníficas. É pena.
      Fico à espera de saber qual foi a escolha e como correu! :)

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  4. Também fiquei curioso... mas torço o nariz, e não é tique, a frases absolutas (e absolutistas) como esta: "But there is only one thing that has power completely, and this is love. Because when a man loves, he seeks no power, and therefore he has power." Não tem sido bem o que tenho observado por esse mundo fora... Admito que, enquadrado no enredo, o amor seja a panaceia para os males que afligem as personagens dessa obra, mas o amor, seja lá por quem for e como for, por vezes, não passa de uma mera mezinha.
    Fiquei curioso, repito, e obrigado pela partilha.

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    1. Sim, é verdade - e também é verdade que a citação faz sentido tendo em conta o seu contexto (além de personagens que procuram salvação no amor, há ainda quem esteja sedento de poder e que pode ou não ter esquecido compaixão e amor pelos outros). Percebo perfeitamente o torcer de nariz; não partilhei a "frase absoluta" enquanto grande poço de conhecimento, mas enquanto algo que faz sentido na obra. É um bom livro - ou pelo menos, eu gostei. Especialmente para a época, tendo denunciado várias realidades.

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