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Druuna, Vol 1: Morbus Gravis - Delta

Ora, a isto é que se chama sair da zona de conforto.


O meu respectivo adquiriu este primeiro volume de Druuna no Amadora BD de 2018, sendo que voltámos na semana seguinte para ele poder adquirir o segundo - gostou assim tanto. E desde então que insistia para eu ler, não obstante eu já ter vislumbrado algumas páginas e ter alguma noção (preconceito?) que não seria para mim (a cueca reduzida na capa já mo dava a entender).

Este primeiro volume compila as duas primeiras histórias, Morbus Gravis, de 1986, e Delta, de 1987, e inclui algum material extra no fim. Druuna é o nome da personagem principal, e conhecemo-la logo no início de Morbus Gravis, deitada na sua cama a folhear livros - que descobrimos estarem há muito banidos. Também nos apercebemos da presença de algo estranho e algo ameaçador chamado Shastar, a quem Druuna promete arranjar "soro".

A acção decorre na "Cidade", um ambiente urbano, futurista, extremamente degradado e decadente, onde o poder é controlado por uma espécie de seita religiosa com base na "Verdade". O soro que Druuna vai obter é um bem escasso, pelo qual as pessoas lutam, de modo a evitar mutações que farão com que a polícia os leve para uma espécie de esgoto subterrâneo. Druuna auto-sacrifica-se para obter soro para Shastar, que descobrimos ser seu namorado; e Druuna, na verdade, sacrifica-se muito mais vezes ao longo do livro, pois não é apenas o médico corrupto que está interessado no corpo dela.


Após uma série de desventuras, Druuna descobre uma série de factos que desconhecia sobre a Cidade, deixando-a confusa e perdida quando a sua realidade se desmorona; mas Druuna está pronta para enfrentar a realidade, e é aqui que entramos no segundo volume, Delta. O ponto alto, para mim, encontra-se neste volume, com a introdução de um personagem inesperado com o qual Druuna se tinha cruzado no volume anterior.

Druuna é, portanto, uma obra de ficção científica pós-apocalíptica distópica - temos um lugar sob um governo totalitário, com uma epidemia terrível (ui) como catalisador deste mundo; mas também há erotismo explícito, que será o que salta mais à vista a quem folheia o livro. Druuna é frequentemente retratada sem roupa ou com roupa diminuta, em situações sexuais bastante perturbadoras.

A arte é maravilhosa - não vou negar que Druuna é lindíssima e se sente a dedicação colocada por Serpieri ao trazê-la à vida através do papel. O problema, para mim, é que a vida, para Druuna - não obstante ser uma personagem complexa, com um passado, com motivações - acaba por parecer um sem-fim de exploração de situações em que ela estará desnuda e será, de algum modo, usada, fetiche atrás de fetiche.

Além de Druuna, destaca-se o realismo de outros personagens, incluindo os mutantes repulsivos que dão forma a este mundo pós-apocalíptico. As cores são, também elas, magníficas. É inegável. Mas a arte acaba por parecer ser o factor principal aqui - a narrativa parece, em parte, quase uma desculpa para poder ilustrar certo cenário. Não digo que a história, aqui, seja má - apenas se perde (para mim) nos cenários sexuais repetitivos e mesmo incómodos (o segundo volume, em particular, tem apologia de violação).

É um mundo desesperado e interessante, e a premissa pareceu-me boa - apenas o modo como a história é levada adiante acaba por me incomodar. Talvez eu seja púdica; talvez não aguente tanta cena explícita; talvez não aguente tanto abuso sexual. Mesmo que possa servir como meio para demonstrar o quão horrível é aquele mundo (também The Handmaid's Tale assenta sobre uma premissa de violação, no fundo, certo?).

Não é para todos, não. Não é, definitivamente, para mim.

3/5

Podem comprar esta edição directamente à editora

Comentários

  1. Em primeiro lugar kudos por teres saído da zona de conforto Ba! Qual o próximo desafio?
    Óptima fotografia, a capa do livro é lindíssima, tal como todo o livro; para mim, do que li de novelas gráficas/mangas, etc., a arte do Serpieri é a que mais gosto, belíssima ao ponto de ela em si contar uma história
    Gostei muito do post Ba, acho que conseguiste descrever muito bem e sem spoilers o teor do livro
    Percebo a questão que colocas em relação às cenas explícitas, abusos sexuais, nudez, etc., mas também gostei de como comparaste com The Handmaid's Tale no sentido da premissa
    A mim The Handmaid's Tale choca bastante, ao ponto de ser tão assustador que quase perco o fôlego em certas situações, porque está tão longe mas ao mesmo tempo parece que tão perto de se poder tornar uma realidade algures no tempo e no espaço
    Já Druuna deixa-me profundamente triste, é muito assustador a um nível pessoal/individual, vejo como uma situação ainda mais aterradora do que a que a June passa (há toda a questão do filho da June sim, mas ainda assim tenho este pensamento), ou seja, tal como a June há muitas outras, infelizmente, mas em relação à Druuna parece ser só ela, completamente sozinha, apesar de em relativa liberdade, mas uma liberdade falsa, isolada num local também ele isolado (interiormente e exteriormente) e à deriva, mais os problemas de identidade, não sabe quem é ou o que é... quando pensa que sabe certas coisas não são bem assim, e descobrires que certas pessoas não são o que parecem é mau, mas descobrires tu própria que não és o que pensas que és, em vários sentidos, enfim, é simplesmente destruidor

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    Respostas
    1. A Druuna não tem noção do que se está a passar à sua volta, enquanto a June tem um mínimo de compreensão, a Druuna existe entre a realidade e o sonho, não tem qualquer tipo de maldade, é uma personagem muito mais complexa do que aparenta e percebo perfeitamente o que queres dizer com "a arte acaba por parecer ser o factor principal aqui - a narrativa parece, em parte, quase uma desculpa para poder ilustrar certo cenário", apesar de não ser minha opinião, como sabes a minha experiência foi ficar boquiaberto com o fim da primeira história e com tudo o que se seguiu
      Percebo também que não seja um livro para todos mas eu gostei muito mesmo e recomendo a qualquer pessoa que goste ou esteja interessada em ler ficção cientifica, distopias, literatura pós-apocalíptica e tanto arte sublime de desenho como uma narrativa que aborda certos temas não tão abordados na maioria da literatura, não só toca em certos extremos que pode deixar o leitor desconfortável ou mesmo transtornado mas dá sempre os dois ou mesmo mais lados do ponto de vista das personagens, enfim, sou fã desta saga que acho que é muito mais do que uma arte(Serpieri)/cara bonita (Druuna)
      Excelente post, acho que se a Vanda o lesse ia gostar muito!

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    2. PS. Autores italianos de novelas gráficas nunca desiludem (até agora)

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    3. Não sei qual será o próximo desafio, mas sei que não passará pelo segundo volume de Druuna; fico-me por aqui :(

      Talvez o que me choque aqui - mais que na obra de Margaret Atwood - seja não só o grafismo, porque aqui visualizamos inevitavelmente as cenas, mas a complacência e a naturalidade com que tudo acaba por ser aceite. Mesmo sendo uma realidade que me parece muito mais distante que a de Handmaid's Tale, lá, temos várias pessoas revoltadas com a situação. Há resistência, há a noção de que é errado. Aqui não... refiro-me com isto, é claro, aos momentos de claro abuso. O consensual não me incomoda, embora o grafismo das cenas me deixe desconfortável.

      Talvez por isso, sim, seja de facto mais aterrador - porque ninguém questiona; mas estar numa situação que se sabe errada mas ver que é inelutável parece-me aterrador também. Às vezes usa-se como argumento (especialmente em questões internacionais relativas a direitos humanos) que certa realidade é "a única que conhecem" - esta era a única realidade para Druuna, e ela não questiona até lhe dizerem que se calhar é preciso. Até descobrir coisas que não sabia...

      Eu compreendo essa perspectiva, e não nego que haja aqui uma narrativa; apenas me parece que muito do caminho que ela percorre é desnecessário e apenas para ilustrar um momento sexual. Novamente, perspectivas!

      Achei perturbador a mais que um nível, de facto.

      Até agora :p

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