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Já então a raposa era o caçador

Um dos livros mais intrigantes que li este ano.


Não sei muito sobre a Roménia e sobre a ditadura de Ceaușescu. Ver que este livro era sobre uma professora perseguida pela polícia secreta romena despertou substancialmente o meu interesse - mais ainda vendo que Herta Müller ganhou um Nobel (que, como sempre, vale o que vale).

Temos uma cidade sem nome, num ano sem nome - eventualmente (para quem, ao contrário de mim, não tiver lido a contracapa) é revelado que a narrativa se passa na Roménia de Ceaușescu, num país pobre, comunista, a ameaça premente. Talvez esta Roménia cinzenta, pobre e carregada de medo seja a verdadeira protagonista do livro.

O livro não se centra apenas na professora, Adina, mas naqueles que constituem as suas relações próximas: temos também Clara, a sua amiga que trabalha numa fábrica, Ilie, soldado, Paul, músico e médico, e Pavel, um homem casado que se torna amante de Clara. Pavel tinha-lhe dito, quando se conheceram, que era advogado, mas rapidamente descobrimos que pertence à polícia secreta. Clara justifica a sua relação pensando que os seus amigos serão protegidos, mas na verdade estão todos a ser observados.

Vemo-lo interrogar Abi, um amigo de Paul e Adina, acerca de uma canção.

Não se refere a ninguém, diz Abi, é só uma canção. E a cortadela diz: então porque é que a cantam, se não se refere a ninguém. Porque é uma canção, diz Abi.
Refere-se ao presidente, diz a cortadela. Não, diz Abi.
As paredes estão cheias de tomadas. Têm uma boca. O pé do candeeiro tem algarismos amarelos, um número de inventário.
Então não está informado, diz o sinal de nascença, o teu amigo Paul confessou, e ele deve saber do que fala. Afinal foi ele que escreveu a canção, diz a cortadela.

É um livro sobre viver num regime autoritário e descobrir que não se pode confiar em ninguém, que não há verdadeiros amigos, que não se sabe quem são os agentes do Estado. Nada é o que parece ser, ou pelo menos pode esconder alguma coisa. Dúvida, paranóia, em cenas que parecem passar uma atrás da outra como se se tratassem de sonhos.

São pessoas banais, com vidas banais - vemos pessoas a tentar atravessar o Danúbio e fugir para a Hungria, e não haver ninguém que sinta a sua falta quando se afogam. Tentam sobreviver na opressão do regime. Debaixo do céu cinzento da ditadura, ninguém mais pergunta a ninguém como está.

E uma contradição é que os habituais homens e mulheres se encontrem nas ruas da cidade e assustem o filho de um morto porque em vez de COMO ESTÁS perguntam COMO TE DÁS COM A VIDA.

Na fábrica, Clara e algumas colegas costumam ir para uma espécie de sótão espiar os colegas que, nus, vão tomar banho depois do trabalho. Também na fábrica, Clara e as colegas têm de aturar o director, Grigore, um predador sexual corrupto, cujas agressões são normalizadas no regime totalitário.

Além da interrogação de Abi, temos o drama de Adina e Paul.

Um dia, Adina chega a casa e apercebe-se que alguém esteve no seu apartamento, deixou uma beata a futuar na sanita e cortou a cauda da pele de raposa que tinha desde nova, deixando-a ali, junto ao corpo. Seguem-se as patas traseiras, uma por uma. É um aviso - mas porquê? E o que acontecerá quando a última pata for cortada?

Quando Adina se apercebe que o homem que interrogou Abi é o mesmo com quem Clara tem uma relação, confronta-a, acusa-a, diz-lhe que nunca mais a quer ver. Pouco depois, Clara aparece no apartamento de Adina, que se recusa a deixá-la entrar.

Pela fenda da porta, desliza um bilhete para dentro de casa.
Adina lê:
ESTÃO A PRENDER PESSOAS EXISTEM LISTAS TENS DE TE ESCONDER EM MINHA CASA NINGUÉM TE PROCURA.


Adina vai ao hospital procurar Paul, e dá-lhe o bilhete. Fogem os dois para o Sul do país, para a casa de um amigo, Liviu, numa pequena vila na fronteira, onde se ouvem tiros (os soldados a evitar que pessoas escapem), onde se escondem durante dias sem abrir as cortinas ou ligar a TV ou o rádio, com medo que os vizinhos dessem por eles e os reportassem.

Até à manhã em que ouvem um enorme alarido lá fora, e Liviu entra em casa a correr, liga a TV, e todos assistem à fuga de Ceaușescu,  de helicóptero, agora deposto.

Paul abre as cortinas de todas as janelas. Há tanta luz dentro de casa que até as paredes estremecem, pois cada parede é maior que o quarto inteiro.

A narrativa em si não é particularmente densa; a linguagem, porém, é. A narrativa não é linear, e é difícil saber onde nos leva - apenas a cerca de metade do livro se dá o episódio da cauda da raposa, por exemplo. Parece quase um livro de espiões, dados os interrogatórios, a fuga da polícia secreta, mas torna-se em algo completamente diferente.

Não será, assim, um livro para qualquer um - não para quem precisa de uma narrativa delineada, de grandes eventos, de personagens bem caracterizadas. É um conto da vida sob uma ditadura, sob a opressão, para melhor compreender a Roménia autocrática. Porque, apesar da tirania, a obra é-nos apresentada quase como um conto de fadas, um sonho. Um conto negro sobre os últimos dias da Roménia comunista, talvez, envolto em linguagem poética e ainda assim expondo o terror da sociedade.

A linguagem, novamente - aquilo que mais se destaca neste livro. A forma como cria um cenário quase surreal, de sonho, que quase custa a acreditar que não é ficção, não é um escape, é a Roménia comunista. A forma como, através da linguagem, Herta Müller torna o horrível em imagens de enorme beleza, como pega em metáforas constantes, sementes de girassol, árvores, marmelos, e cria uma força omnipresente e opressiva, pega em situações banais e mostra as dificuldades da vida romena sob este regime.

O subúrbio estava preso à cidade por canos e arames e por uma ponte sem rio. Em ambas as extremidades o subúrbio era aberto, assim como as paredes, os caminhos, as árvores. Numa das extremidades rumorejavam os elétricos da cidade e as fábricas sopravam fumo por cima da ponte sem rio. O rumorejar do elétrico em baixo e o fumo em cima eram por vezes a mesma coisa. O campo devorava a outra extremidade do subúrbio, projetando-se com as folhas de beterraba até muito longe. Por trás, reluziam paredes brancas, eram do tamanho da mão. Havia lá uma aldeia. entre a aldeia e a ponte sem rio estavam ovelhas dependuradas. Não comiam folhas de beterraba, a erva crescia nos caminhos do campo e elas comiam o caminho antes de o verão terminar. Depois estavam já diante da cidade e lambiam as paredes da fábrica.

4/5

Podem comprar esta edição aqui.

Comentários

  1. Li o romance há quase 5 anos e meio, nunca mais voltei à escritora por não ter ficado fã, nem motivado para conhecê-la melhor, na altura concluí assim: "Gostei da estória, das personagens e dos símbolos. Não gostei da escrita: troca de atributos dos sujeitos das frases com os complementos, o que amplia o efeito das pessoas como autómatos impotentes perante a realidade; metáforas por vezes forçadas e desagradáveis; e ausência de pontos de exclamação e de interrogação, um estilo que não me agradou."

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    1. Compreendo, Carlos. Mesmo tendo gostado do livro, não estou particularmente curiosa para ler mais da autora. Tendo gostado da escrita, da linguagem, compreendo a questão das metáforas (a própria pele da raposa é uma metáfora forçadíssima), da pontuação "seca", embora tenha sentido que isso, a par dos "autómatos impotentes", tenha contribuído para a tensão e ambiente de ditadura. É um livro seco, de leitura um pouco lenta e estranha.

      Feliz Natal!

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  2. Ainda bem que conseguiste dar algum sentido a esta leitura, porque as páginas que li foram totalmente crípticas. Não preciso de grandes narrativas, mas não prescindo de personagens bem desenvolvidas e uma escrita cativante, e este livro para mim era maçudo e surreal.
    Foi o livro da Roménia há uns meses para aquele clube do Booktube a que pertenço, e a metade que não desistiu não lhe deu mais do que 3 estrelas. Estavam todos às aranhas! :-)
    Talvez dê outra hipótese à autora, porque uma coisa ninguém lhe tira: tem títulos que realmente chamam a atenção.
    Paula

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    1. Percebo o críptico, sem dúvida - todo o interrogatório sobre a canção, por exemplo, é relatado de tal maneira que é preciso prestar muita atenção para se perceber o que se passa. Os diálogos não estão bem marcados. Nem sempre se percebe bem que personagem estamos a acompanhar. E por aí fora...
      As personagens estão distantes, o ambiente é estranho - suponho que tudo isto seja propositado, naquela maneira de retratar a opressão vivida. Percebo o maçudo - também não foi a leitura mais fácil para mim.
      De facto, os vários títulos das suas obras são fascinantes - confesso que foi muito do que me levou a pegar neste livro! Não me arrependo, mas, e embora tenha gostado deste, acreditando que são todos semelhantes, não sei se insista tão cedo :)

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  3. Eu lerei a autora a meio do ano, a propósito da leitura partilhada #nobelwomen. Mas a leitura será com A Terra das Ameixas Verdes (se o conseguir arranjar). Depois de ler a sinopse, concluo que é muito parecido com o que descreveu.

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    1. Que título magnífico!

      "um relato contido e agudo de existências em perigo sob a ditadura de Ceausescu. Romance político? Também. Mas é sobretudo um poderoso libelo contra a desumanidade tortuosa dos sistemas de governo cuja legitimidade deriva do silêncio e do medo."

      Parece de facto conter uma temática semelhante. Como é esse projecto do #nobelwomen, Cristina? Por curiosidade, fui ver quantas das laureadas já li: Gabriela Mistral e Herta Müller, apenas. Tenho algumas outras (poucas) na estante...

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  4. Já tive, diversas vezes, com livros de Herta Müller nas mãos na Feira do Livro e acabo sempre por deixar para o ano seguinte. Espero que 2019 seja o ano em que trago pelo menos um comigo. Apesar do teu alerta em relação a este livro, tenho a sensação que vou gostar :)

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    1. Que 2019 te traga um livro da autora, Alexandra :) acredito que vás gostar, especialmente se todo o abstracto da obra não te convenceu do contrário :)

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  5. Acho este tipo de livros sempre importantes, para nunca esquecer a história, destaco duas referências no teu post:
    - 'Debaixo do céu cinzento da ditadura, ninguém mais pergunta a ninguém como está.' damn..
    - 'onde se escondem durante dias sem abrir as cortinas ou ligar a TV ou o rádio, com medo que os vizinhos dessem por eles e os reportassem.' este comportamento que é, no fundo, comum em tantas atrocidades recentes é assustador.. assustador pensar nisso, no que tinham de fazer para sobreviver
    Como já te disse não sei se vais gostar propriamente do The Cowards do Škvorecký mas também acho que é uma leitura muito importante a vários níveis, para além do natural histórico e cultural; nunca esquecerás Praga bem sei, tal como eu, mas enquanto a memória está mais fresca penso ser a altura ideal para ler o livro, agora que faz dois anos que lá fomos :p

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    1. Dizes sempre isso, não obstante eu ter o livro na wishlist há anos :( hmpf hmpf
      O mais interessante no livro é o quão rápido (ou não - o sentido do tempo perde-se um pouco na obra, por ser tudo tão abstracto) as coisas mudam: num momento Adina está bem, tem uma vida normal; no outro começa a ter medo, afasta-se da melhor amiga, tem de se esconder. E é assim a opressão, no fundo - tudo está bem, até que não está.
      E por falar em livros comprados em Praga, há uma outra review aqui ao lado :$

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    2. Digo sempre isso o quê? Se é sobre o The Cowards reitero, porque já o li e tu ainda não Ba, e conheço-te bem, mas é só uma opinião, um pequeno comentário, o ter algo numa wishlist não quer dizer automaticamente que se vai gostar; agora, até pode ser o teu livro favorito depois de o leres claro, e se assim for ficarei contente, uma boa leitura é das melhores coisas desta vida
      Já li a review ao lado :p

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    3. Challenge accepted, 2019 irá ditar os meus sentimentos quanto ao livro :p

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