Avançar para o conteúdo principal

Vathek

Desafio de Janeiro: um clássico anterior a 1800.


Estava dividida entre Vathek e Phédre, de Racine; o meu respectivo acabou por desempatar, a pedido, escolhendo este sem sequer ler a sinopse da alternativa.

Há mais de uma década que tinha este livro na mira: é um clássico do gótico, escrito por William Beckford em 1782, originalmente em francês. Foi o seu amigo, Rev. Samuel Henley, que o traduziu para inglês, e consequentemente o publicou em 1786. A história das alterações do texto é interessante, as traduções e alterações várias, a falta de um texto definitio. Fora isso, não tenho particular interesse pela literatura gótica "original" - aquela com que Jane Austen goza em Northanger Abbey. Mas Beckford viveu em Portugal, tendo escrito extensamente sobre Sintra, Batalha e Alcobaça (há um marco com o seu nome nos jardins de Monserrate), e era sobrinho do Lord Hamilton.

A obra retrata o Califa Vathek, um homem dedicado aos prazeres sensoriais, que constrói uma torre tão alta que consegue ver as estrelas e os reinos em seu redor. Conta como gótico se os eventos decorrem numa Arábia ficcional, e não num cenário pós-Medieval? Conta. Porque a literatura gótica se interessa profundamente pelo sobrenatural, por elementos fantasiosos, inexplicáveis, transcendentes; e porque Vathek, o nosso "herói", é obscuro, pleno de defeitos.

O reinado de Vathek é marcado por turbulência. Os seus gostos refinados, a glutonia, o apetite por mulheres - a sua busca pelas ciências e pelos segredos do mundo, que o levam a construir a torre para poder estudar astronomia e astrologia - a sua arrogância, o seu olho aterrador, os seus cinco palácios dedicados a diversões exóticas... E a sua mãe, Carathis, grega, que utiliza a torre para as suas ciências obscuras. A maioria dos súbditos, empobrecidos, odeia-o e às suas extravagâncias, mas, com medo de serem executados, não se rebelam. 

Um dia, um homem repulsivo - possivelmente o homem mais feio do mundo - aparece em Samarah, no reino de Vathek, e oferece-lhe vários sabres misteriosos, incrustados de pedras preciosas, com dizeres numa língua indecifrável. O desconhecido, Giaour ("infiel"), desaparece. Quando um homem capaz de traduzir aparece, as inscrições prometem a maior riqueza do mundo; no dia seguinte, porém, as inscrições mudam, e continuam a alterar todos os dias.

Quando o Giaour reaparece, solicitando sacrifícios e prometendo a Vathek a maior riqueza e a soberania do mundo a partir das ruínas da cidade de Istakar (Persépolis), destruída por Alexandre o Grande. Os seus súbditos ficam aliviados com a sua ausência, desejando que ele nunca volte. Vários eventos mais tarde, incluindo o quase rapto de Nouronihar, a jovem filha de um Emir, um génio materializa-se para tentar impedir Vathek de prosseguir caminho e entrar na cidade deserta e solitária.

E Vathek toma a sua decisão.

Woe to the rash mortal who seeks to know that of which he should remain ignorant, and to undertake that which surpasseth his power!

O livro é bizarro, e consegue aborrecer, não obstante a sua curta dimensão. Há várias observações irónicas, e uma prosa elegante, mas o orientalismo, o ódio pela mãe, acabam por parecer mais reflexos da vida do autor, que distorcem a narrativa, mais do que a enriquecem. Igualmente fonte de distorção são as inúmeras notas de fim de texto a explicar referências (as notas não são do editor, mas sim, de Beckford e/ou de Henley).

A mistura de "1001 Noites" com o estilo gótico pode chegar ao incrível (e, aqui, roça-o, em partes), mas também testa a paciência do leitor, especialmente com o quão a sério o autor se parece levar. Apesar do seu potencial de comédia, não lá chega, e os pontos dramáticos são extremamente obscuros, à medida que Vathek procura ter mais poder do que aquele de que já dispunha enquanto Califa. Dado que ele já tinha tudo, e quer mais, não é uma personagem pela qual seja fácil (ou, diria mesmo, possível) sentir empatia. Os momentos de remorso são inesperados e breves, e as oportunidades de voltar atrás que se lhe apresentam, muitas.

É difícil ver este homem como vítima - seja das circunstâncias, seja da sua mãe.

E, quando Vathek, Nouronihar e Carathis conseguem o que queriam (e quando isto não é exactamente aquilo que esperavam), dadas as paixões sem restrição, acções atrozes e ambição cega que demonstraram até aqui, também não sentimos pena.

O que, ainda assim, para mim, acaba por retirar mais da leitura são as muito extensas notas de fim de texto. A grande maioria é para contexto, explicações históricas e bibliográficas, referências várias, demonstrações de orientalismo - e muitas delas envolvem debate entre o autor e o tradutor.

As últimas páginas são muito boas, memoráveis e valem pelo aborrecimento que se sente lá para o meio. São também extremamente influentes na sensibilidade gótica de autores futuros (Poe), o que pode ser relevante para quem tenha interesse na história da literatura.

3/5

Podem comprar esta edição na wook ou na Bertrand; as várias edições em português encontram-se esgotadas.

Comentários

  1. As coisas que tu descobres... Nunca ouvi sequer falar deste livro!
    A minha primeira leitura do desafio, Proposta Modesta, de Jonathan Swift, correu-me um pouco melhor, já que lhe dei 4*. Surpreendeu-me a modernidade da escrita e do tom, horrizou-me um pouco o conteúdo.
    Paula

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. É, este apesar de não muito antigo, é algo rebuscado!

      Muito curiosa com a tua leitura :) não creio que seja algo presente na minha wishlist!

      Eliminar

Enviar um comentário