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Anna Karenina

Será possível falar deste livro sem incorrer num discurso quase tão longo quanto o mesmo?



Anna Karenina é um livro que habitava o meu imaginário há vários anos, a minha lista do Goodreads há cerca de doze, e as minhas estantes há quatro. Faço algo frequentes piadas sobre livros grandes e escoliose (que, efectivamente, tenho), e decidi novamente que o facto de trabalhar em casa, não obstante me roubar o tempo do autocarro para a leitura, me facilita a leitura de livros maiores sem prejudicar as minhas costas.


E, após ouvir algumas pessoas dizer que Anna Karenina é essencial; após ver a Rory Gilmore de 16 anos a partilhar o livro com o Dean (odeio o Dean); após muito debate interno, foi desta que peguei no livro. A leitura não foi seguida, mas sim intermitente com outras obras, por motivos vários - salas de espera, praia, mood geral -, mas foi uma experiência agradável e recomenda-se.


Comecemos pelo início.


Happy families are all alike; every unhappy family is unhappy in its own way


É este o fio condutor de toda a narrativa, que se constrói em torno deste tema de felicidade e infelicidade familiar. O livro começa quando Anna Karenina chega a Moscovo, vinda de S. Petersburgo, de modo a ajudar o seu irmão e cunhada numa crise conjugal: Oblonsky teve um caso com uma das governantas e a sua esposa, Darya "Dolly" Alexandrovna descobriu, desejando como consequência abandonar o marido e levar consigo os seus cinco filhos. Anna aparece como figura reconciliadora, acalmando a fúria (compreensível) de Dolly, ao mesmo tempo que começa a repensar o seu próprio casamento infeliz.


A partir deste quadro de infelicidade, conhecemos Kitty Scherbatsky, irmã mais nova de Dolly, que tem dois pretendentes: o Conde Vronsky, pelo qual ela e a sua mãe estão encantadas, e Konstantin Levin, amigo de infância. Quando Kitty rejeita Levin por preferir Vronsky, este, de coração partido jura nunca casar; e quando Vronsky, num baile, aparenta estar completamente apaixonado por Anna Karenina, Kitty entra numa profunda depressão.


Anna, um pouco como Emma Bovary, acaba por encontrar na infidelidade algum entusiasmo e novo apreço pela vida, acabando assim por abandonar o seu marido e filho e ir viver com Vronsky, sem obter um divórcio. Toda a sociedade - família e amigos incluídos - está horrorizada com o seu comportamento de "mulher indecente", pois o casamento deve ser sagrado. Apesar da vida de grande conforto - Karenin, o marido de Anna, vinte anos mais velho que ela, tinha uma muito boa posição na sociedade -, Anna opta pelo isolamento, por ser rejeitada por uma sociedade antiquada, ancorada em instituições como o casamento, e entra num enorme conflito interno.


Quando Levin e Kitty se reconciliam e acabam por casar, por amor mais que por "interesse" social, vão viver para o campo que Levin ama. Levin é tido como uma espécie de alter-ego de Tolstoy, revelando os seus interesses e crenças - tanto em termos religiosos quanto sociais. É através de Levin que lemos sobre o potencial de modernização da Rússia, sobre reforma agrária, sobre os direitos dos trabalhadores agrícolas. Mas também o casamento de Levin e Kitty tem crises, ciúmes e desilusões - tal como Dolly, apesar de ter acalmado e ficado com o marido, questiona frequentemente a sua relação com um homem que a vê apenas como máquina de fazer filhos e de multibanco.


Todas estas mulheres questionam o seu lugar na sociedade, abordando não só a questão do casamento, mas também tópicos como a educação e o papel na vida pública.


Uma outra perspectiva a retirar é que, não obstante o lugar destas pessoas na alta sociedade - que é frequentemente descrito com algum desdém -, é notório que a riqueza material e posição social não os livra de lutas interiores, de conflitos com o que fazer com as suas vidas, podendo até (como acontece com Anna) tornar-se numa prisão.


E sim - "Anna Karenina" é um título algo enganador, dado que Anna não é necessariamente a protagonista do livro, sendo Levin e a sua relação com Kitty igualmente importantes. Apesar de apreciar a paixão com que Tolstoy encheu as páginas dedicadas a Levin, ainda assim (e talvez induzida pelo título do livro a pensar desta maneira...) preferi a história de Anna, uma mulher que casara com um homem vinte anos mais velho e que, de modo adequado e como manda a sociedade, lhe deu um herdeiro. Um homem apaixonado por ela, sim - mas que não despertava nela qualquer sentimento.


Não há nada de muito novo nesta narrativa, não - há inúmeros livros sobre infidelidade. Além do Madame Bovary, o Thérèse Raquin, por exemplo. Mas ao começar um caso com Vronsky, Anna acabou por se tornar persona non grata numa sociedade que continuava a aceitar Vronsky, tornou-se na parte "culpada" de um caso escandaloso, tornou-se dependente na magnanimidade de Karenin em lhe conceder um divórcio, e acabou por se perder em infelicidade, depressão e ciúmes loucos, sentindo-se abandonada não só pela sociedade mas pelo seu amante, sentindo-se inválida, inútil e, acima de tudo, vazia.


Se calhar o problema de Anna não era Karenin; ela própria admite, a certo momento, que "passara" o seu amor de Karenin para o filho, do filho para Vronsky... como Holly Golightly (como todos nós), Anna parece incapaz de escapar de si mesma, presa não só pelas amarras da sociedade, pelas circunstâncias da sua vida, mas por si própria.


E Tolstoy consegue colocar-nos perfeitamente nos pensamentos de todos os personagens.


5/5

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Comentários

  1. Que gatinha tão linda
    Excelente publicação, gostei muito
    Anna Karenina é uma obra bastante conhecida e conceituada; no entanto, eu - como cabeça na lua que sou - não fazia ideia do que tratava, fiquei muito curioso
    Gostava de ler o livro nos próximos tempos de forma a poder debater contigo de uma forma mais aprofundada
    Destaco a parte em que referes que não obstante o lugar na alta sociedade de certas pessoas é notório que essa riqueza material e posição social não os livra de lutas interiores, de conflitos com o que fazer com as suas vidas, podendo até tornar-se numa prisão; é um tema que me faz alguma confusão, porque são pessoas como tu e eu e todo o resto das pessoas que existe e existiu e irá nascer, todos temos os nossos problemas e as nossas vidas, no entanto fica a sensação que a sociedade em geral não tem - nem nunca teve - qualquer empatia com, por exemplo, pessoas com mais posses materiais, porque se têm dinheiro como é que é possível não serem felizes? Apesar do clássico cliché do dinheiro não trazer felicidade; há como que uma pressão da sociedade para, se tiveres dinheiro, seres feliz, e quem diz este exemplo diz tantos outros, nesta obra claramente temas interessantes claramente não faltam

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    1. é a Mimiiiiiii :p
      rich people, they're just like us! a verdade é que aqui as amarras da (alta) sociedade eram muitas, para vários dos personagens - manter as aparências também custa... e mesmo levin, preocupado com a reforma agrária, é algo criticado por se preocupar com questões de "gente pobre"!
      acredito que gostarás mais da parte do levin que da da anna :p

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    2. Um dia dir-te-ei de qual parte mais gostei, fica combinado!

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  2. Isto de ter uma gatinha cujas cores condizem com o livro que se está a ler não é para qualquer um... :-)
    Apesar de saber o fim, porque vi o filme há décadas, quando for velhinha também hei-de lê-lo. Que bom que a empreitada valeu a pena!
    Paula

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    1. posso ser suspeita, mas acho que a minha gatinha fica bem com tudo! :)
      se o fim a que te referes é um que envolve comboios (que eu tinha bem presente no meu imaginário, embora nunca tenha visto o filme, tanto quanto me lembre), aviso desde já que o livro continua, após esse evento, por umas boas dezenas de páginas! eu, pelo menos, não estava à espera :)

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