Avançar para o conteúdo principal

A Leoa: Um Retrato Gráfico de Karen Blixen

Foi graças à Cristina que soube da existência deste livro.


Tal como o título dá a entender, A Leoa: Um Retrato Gráfico de Karen Blixen é uma novela gráfica que relata a biografia de Karen Blixen. Para quem não consiga associar, Karen Blixen é a mulher dinamarquesa que escreveu o livro que daria origem a (entre outros livros, e outras adaptações) África Minha, o filme com Meryl Streep que, não se surpreendam: nunca vi.

Esta biografia tem um início fantasioso: vemos a bebé Karen rodeada de sete figuras, como se fossem fadas madrinhas: Nietzche e a sua filosofia, Shakespeare e a literatura, um leão e um rei da África negra, que simbolizam o futuro de Karen, Sherazade e a vontade de contar histórias, uma cegonha e a vontade de voar, migrar, partir... e o Diabo, que promete obstáculos durante toda a vida de Karen. Honestamente, este momento foi um pouco forçado, mas retira logo a componente "realista" da biografia, dando outro toque à narrativa e mostrando que há maneiras diferentes de narrar a vida de alguém.

Após este prelúdio, o livro divide-se em três partes: Os Ventos Contrários, sobre a sua família, a sua infância, e como vai parar a África; Os Ventos de Leste, que narra a sua estadia no continente africano, mais especificamente no Quénia britânico; e, por último, O Vento Muda, que retrata o seu regresso à Dinamarca natal, 17 anos depois de ter partido.

Na primeira parte, conhecemos os pais de Karen: Ingeborg Westenholz, pequena burguesa tradicional, e Wilhelm Dinesen, o mais novo de oito irmãos, filho de uma nobreza decadente, dotado de um espírito aventureiro e de uma enorme incapacidade de ficar no mesmo sítio, viajando para a América frequentemente. Karen, ou Tanne, era a favorita do pai, apesar de a mãe desejar criar todos em perfeita igualdade, porque Karen teria o mesmo espírito livre que o pai, o mesmo receio de ficar presa, o mesmo anseio de liberdade. E é quando perde o pai que começam a surgir os primeiros obstáculos.


Karen não frequentou a escola: tinha a educação da avó materna, puritana e extremamente religiosa, e os livros que a rodeavam, Jane Austen, Selma Lagerlöf, James Joyce, Shakespeare, Goethe, Flaubert, Lewis Carroll, as irmãs Brontë... porém, em 1903, ingressa nas Belas-Artes de Copenhaga, recebendo um enorme choque ao se aperceber das diferentes maneiras como eram tratados homens e mulheres. A pintura, o desenho e as artes gráficas tomam assim um lugar secundário na sua vida, e apercebe-se rapidamente de que o espírito aventureiro e curioso que herdara do pai não cabia na sociedade dinamarquesa do início do séc. XX, onde era remetida ao espaço doméstico, à Bíblia.

Tudo muda com Daisy Frijs, sua prima paterna, sua melhor amiga, "despreocupada, excêntrica, frívola", que lhe conta da louca paixão que o pai de Karen tivera por uma tia, que morrera nova. Inspirada por esta história de amor, Karen Dinesen apaixona-se por Hans Von Blixen-Finecke, sobrinho da falecida paixão do seu pai - mas este romance falha, e Karen acaba por ver no casamento com o irmão gémeo de Hans, Bror, uma fuga. E é com ele que parte para o Quénia, em 1913.

Ressalvo desde já que o papel colonizador de Karen Blixen é extremamente romantizado e apenas abordado levemente neste livro - e a abordagem que é feita é da "colonizadora benévola". Foca muito na sua suposta luta pelos direitos dos nativos (procurando assumir um papel de "salvadora"), e eu confesso também não saber o suficiente sobre esta parte da sua vida para opinar como deve ser; esta é uma novela gráfica biográfica, não um estudo pós-colonialista, e haverá decerto documentos mais acertados a ler para esse fim. Não considero, também, que ela estivesse "à frente do seu tempo", pois Karen Blixen foi, de facto, uma mulher do seu tempo, colonialista. A sua postura face aos "nativos" era de superioridade. Boas intenções? Aceito. Preconceituosa na mesma.

Mas adiante.

Com Bror Blixen-Finecke, no Quénia, gere uma quinta de produção de café, faz lindos safaris, apanha sífilis do marido que se envolve com as raparigas da zona. Divorcia-se, fica com a quinta, conhece o grande amor da sua vida, e vê-se forçada a regressar à Dinamarca, à sociedade da qual quisera fugir.


É na Dinamarca que, sem ter para onde se virar, surge a inspiração literária: escreve sobre África, sobre a sua nova forma de ver o mundo, dedica-se também à protecção de aves. A sua carreira literária tem um enorme sucesso, após uma rejeição inicial na Dinamarca. Ponto irónico: uma ilustração em que tem uma estola de raposa ao pescoço e menciona a sua luta pela protecção animal.

É um livro interessante por trazer uma perspectiva sobre uma autora e uma mulher que eu desconhecia quase por completo, por dar uma visão sobre a Dinamarca conservadora do início do séc. XX e a forma como os habitantes deste país viam a questão colonial. Na última página, é possível constatar a longa bibliografia que foi consultada de modo a construir esta história com coerência e veracidade.

As ilustrações foram, para mim, a melhor parte desta obra. Os desenhos são lindíssimos, mesmo nos seus tons maioritariamente cinzentos, castanhos, verdes e azuis, retratando povos Sioux, belos cenários africanos, o voo das aves, a melancolia escandinava... acompanham perfeitamente a narrativa, conferindo vida e cor à história desta mulher.

4/5

Podem comprar esta edição aqui.

Comentários

  1. Devo dizer que só conheço Karen Blixen do filme "África minha", que tem uma das bandas sonoras da minha vida. Nunca senti interesse em saber mais sobre a senhora, mas, pelo que li na tua opinião, se tivesse sentido interesse, ter-me-ia ficado pela parte relativa à sua vida ainda na Europa, já que depois teve, como dizes, atitudes pouco coerentes...
    Contudo, se encontrar o livro, vou dar uma olhadela às ilustrações, prometo!
    Beijinhos

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Eu de facto nunca vi o filme, e não conheço sequer a sua banda sonora, mas não duvido da sua qualidade - o filme é, aliás, conhecidíssimo. Eu tinha curiosidade pela senhora, e claro que uma biografia fantasiosa, em novela gráfica, nunca será a melhor maneira de a conhecer; porém, com alguma leitura crítica (o colonialismo, lá está, é muito romanceado), dá para compreender essas incoerências...
      As ilustrações são muito bonitas, e fazem o livro valer a pena. Não deixo de recomendar o livro, apenas me desilude a senhora :) beijinhos!

      Eliminar
  2. Respostas
    1. As ilustrações são lindíssimas! A vida da senhora em si é que pronto :) beijinhos!

      Eliminar
  3. O África Minha já não é do teu tempo, é uma antiguidade! :-) Realmente só tinha noção da vida dela em África, porque é essa a parte retratada nesse belíssimo filme. Lembras-me que tenho de reler o Out of Africa e a Festa de Babette, que são culturalmente tão distintos. Gostei desse pormenor da estola de raposa. Buuuu! Há "animais mais iguais que outros", não é?
    Paula

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não é por ser antigo - eu é que sou muito, mas muito má a ver filmes! Nunca vi nada!
      A minha mãe tem o África Minha na estante (adora o filme), e gostaria de ler um dia. De facto, a sua bibliografia parece extremamente díspar, o que será interessante - hei de a explorar, a seu tempo.
      A parte da estola, não sei se terá sido uma subtileza propositada da ilustradora (é a única justificação lógica, pois o desenho é muito deliberado)... agora que penso, é possível que o livro tenha sido mais subtil em pontos do que eu julgava. Este é da biblioteca, Paula, fica a ideia!

      Eliminar
  4. Ahah realmente não me surpreende o não teres visto o filme mas também não perdes muito, não é nada por ai além (é a minha opinião e vale o que vale claro)
    As ilustrações parecem realmente ser muito bonitas e acho importante até certo ponto conhecer esta história mas tenho algumas questões em relação à mulher e as suas acções mas ninguém é perfeito e há inúmeros factores sempre a ter conta, a época é só um deles
    Miau

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Curiosa com a tua opinião sobre o filme, por acaso :p tenho o livro "África Minha" algures, é da minha mãe
      Talvez te interesse mais saber que a autora escreveu um outro livro :p chamado "Babette's Feast" :o que em português se chama "A Festa de Babette"
      Claro que esta não é uma biografia exaustiva, tal como não o é A Lenda do Rei Gatinho, acho a história de vida dela interessante, mas não é uma mulher tão progressiva como a pintam... uma visão mais profunda pode eventualmente ser interessante, dado ela não provir de um país tipicamente colonial
      Miau leão :p

      Eliminar
    2. Ahahah excelente comentário e mais não digo :p

      Eliminar

Enviar um comentário