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Just Kids

Jesus died for somebody's sins but not mine


Adoro a Patti Smith. Para bem da verdade, o único álbum que conheço bem (e que ADORO) é o Horses, e tive também a honra de a ver ao vivo a interpretá-lo em 2015. Há anos que queria ler esta memória, que incide sobre a sua relação longa, complicada e íntima com Robert Mapplethorpe.

Why can't I write something that would awake the dead? That pursuit is what burns most deeply. I got over the loss of his desk and chair, but never the desire to produce a string of words more precious than the emeralds of Cortes. Yet I have a lock of his hair, a handful of his ashes, a box of his letters, a goatskin tambourine. And in that folds of faded violet tissue a necklace, two violet plaques etched in Arabic, strung with black and silver threads, given to me by the boy who loved Michelangelo.

Também a bem da verdade: não conhecia de lado nenhum o nome de Robert Mapplethorpe. E o central neste livro é, de facto, a relação de ambos, que é retratada com uma enorme sensibilidade. Mapplethorpe queria ser artista, não tinha certeza da sua sexualidade, abusava de drogas. Patti Smith era o lado mais prático da relação, que os mantinha à tona, sacrificando-se por Robert e acreditando sempre no talento dele, como ele, de outras formas, se sacrificava por ela. São pessoas que desistiram do conforto, da segurança, da família, para se tornar artistas.


Ressalvo desde já que não se descobre muito sobre a carreira musical de Patti Smith nesta obra, nem sobre o processo da escrita das suas canções: a ideia é que alguém sugeriu acompanhar a sua poesia com música, e teve sucesso, apesar de esse nunca ter sido o objectivo dela: ela queria apenas produzir arte. Pobre, miserável, sem-abrigo: Patti era feliz, porque tinha a sua arte.

I imagined myself as Frida to Diego, both muse and maker. I dreamed of meeting an artist to love and support and work with side by side.

A estética, a força de Patti Smith compelem-me absurdamente. A cantora, a poetisa, a força, a agressividade, o não-polido do seu trabalho. No entanto, a sua sensibilidade poética ressoa na sua prosa, que é lindíssima, genuína e sincera. E isto de uma pessoa que não aprecia poesia - mas é um livro tão bem escrito que se ultrapassam esses receios.

Patti é extremamente normal, de um modo quase chocante. Honesta, humilde. Relata momentos banais, quase aborrecidos, é real e realista, admite as suas falhas e fracassos. Este volume fala da sua infância, da sua juventude, da luta pela sobrevivência em New York, onde se procurou estabelecer após uma juventude algo atribulada na casa dos seus pais. E, mesmo em todas as dificuldades, sentimos a alegria que ela sentia no seu processo criativo, enquanto artista, no ambiente que viva com Robert.

It was the summer Coltrane died. The summer of “Crystal Ship.” Flower children raised their empty arms and China exploded the H-bomb. Jimi Hendrix set his guitar in flames in Monterey. AM radio played “Ode to Billie Joe.” There were riots in Newark, Milwaukee, and Detroit. It was the summer of Elvira Madigan, the summer of love. And in this shifting, inhospitable atmosphere, a chance encounter change the course of my life.

Descobrimos como, por acaso, as vidas de ambos se cruzaram, naquele verão - e a felicidade que significavam um para o outro, mesmo na pobreza extrema, em adversidades intensas, quando cada dólar fazia a diferença entre almoçar ou passar fome, pequenas indulgências como leite com chocolate, ou comer pelo preço de cinco dedos e uma corrida.


A luta e as dificuldades que passaram em nome da arte são possivelmente suficientes para atrair o leitor: é a definição perfeita de struggling/starving artist. Patti recorda como trabalhava em livrarias para poder sustentar a arte de ambos, que se traduzia em vários meios: além de poetisa, por exemplo, Patti era artista plástica, fazendo pinturas, colares e outras obras.

É maravilhoso ver como, contra todas as probabilidades, Robert e Patti se conheceram, se apaixonaram, e, acima de tudo, como o amor entre ambos se manteve, mesmo quando tinham parceiros diferentes (Patti Smith envolve-se, entre outros, com Jim Carroll, ou Sam Shepard, mas o seu sentimento por Robert mantém-se sempre), modos de vida diferentes. É uma história de amor pela arte, pela poesia, pela música, mas também um pelo outro. Eram almas gémeas.

Where does it all lead? What will become of us? These were our young questions, and young answers were revealed. It leads to each other. We become ourselves.

No meio das dificuldades, Patti e Robert mudam de casa várias vezes, chegando a arrendar um quarto no Chelsea Hotel, onde travam conhecimento com vários nomes da música e da arte. Ao mesmo tempo, acompanhamos o processo de crescimento natural de Patti Smith, a sua ambição, a sua falta de esforço para fazer parte de ambientes (Robert era-lhe suficiente). Mesmo quando estava no centro, quando Robert estava no círculo de Andy Warhol, por exemplo, ou quando são mencionados nomes como Janis Joplin, Jimi Hendrix, Jim Morrison, Patti retrata-se como a "excluída", como aquela que não faz parte. Na verdade, na altura, Patti via-se mais como poetisa ou artista plástica do que como cantora.

Patti recorda gestos, diálogos, expressões, objectos, emoções complexas.

We were as Hansel and Gretel and we ventured out into the black forest of the world. There were temptations and witches and demons we never dreamed of and there was splendor we only partially imagined. No one could speak for these two young people nor tell with any truth of their days and nights together. Only Robert and I could tell it. Our story, as he called it. And having gone, he left the task for me to tell it to you.


Robert encontra um parceiro, Sam Wagstaff, que é também seu patrono; Patti grava Horses, e torna-se conhecida. Os dois afastam-se um pouco, e Patti Smith foca-se na sua carreira e no seu casamento com Fred "Sonic" Smith, de quem tem filhos. Quando o fim chega, para Robert Mapplethorpe, a vida deles já não era marcada pela pobreza, pela destituição. Mas surge um vazio na vida de Patti.

"What will happen to us?" I asked. "There will always be us," he answered.

Antes de ler esta obra, desconhecia por completo Mapplethorpe, mas Patti Smith faz um trabalho incrível ao narrar a sua amizade, a sua relação amorosa, o seu trabalho enquanto artistas, as drogas, a arte, a música, a cultura, o processo criativo.

E o livro é, também, sobre a arte e sobre o artista se manter fiel ao seu trabalho e a si mesmo. A própria Patti é extremamente talentosa: poetisa, artista, escritora, música, cantora, actriz. E, acima de tudo, demonstra uma enorme paixão pela vida, pela liberdade que sentiu em New York, pela inspiração e pela amizade, pelo modo como estes momentos transformaram a sua vida.

5/5

Podem comprar esta edição aqui, ou em português aqui.

Comentários

  1. Eu continuo em busca de uma biografia que tenha o tom certo, em que as protagonistas não me alienem e cujas famílias não me dêem vontade de as estrafegar. E está difícil! Já tentei as mais famosas (O Castelo de Vidro, Uma Educação, O Ano do Pensamento Mágico, Persépolis) e nada, acabo sempre aborrecida ou a condená-las sem piedade. Com a Patti, entre outras coisas, foi o tom ligeirinho com que explica que engravidou de um miúdo e depois seguiu com a sua vida, e só lá para a página 100 é que volta a mencionar numa única frase a criança que despachou. E não achaste demasiado "name-dropping"? Acho que tenho de me limitar à ficção, onde não sou tão crítica! :-)
    Paula
    P.S. - Também esperas às meias horas para poderes lanchar aí, ou fui eu que tive azar? Não fôssemos nós tão gulosos e tínhamos desistido! :-)

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    1. Compreendo isso da parte da gravidez adolescente, e também do namedropping. A parte da gravidez eu já sabia e, como tal, não me chocou particularmente; o namedropping a certo ponto também me pareceu demasiado, mas depois compreendi que, no fundo, era o meio em que ela estava - e era o que estava a acontecer em NY na altura. Possivelmente, se não conhecesse essas pessoas, a vida não teria sido a mesma. Mas talvez eu seja pouco crítica :)
      Leio muito poucas biografias e memórias - aliás, memórias leio algumas (embora poucas), biografias por terceiros, muito poucas. Tenho ali o Princess Diarist da Carrie Fisher por ler, e deve ser o próximo do género. Gostei muito do I Know Why the Caged Bird Sings da Maya Angelou, o A Moveable Feast do Hemingway (mas é preciso gostar do Hemingway enquanto pessoa, e não apenas enquanto escritor...), achei piada ao Fever Pitch do Nick Hornby mesmo sem compreender futebol por aí além. Adoro o Man's Search for Meaning do Viktor Frankl, que para mim é muito mais que uma memória de sobrevivência do Holocausto, e os diários da Sylvia Plath, que não existem em português. Mas, novamente, é preciso gostar da Sylvia :) tenho posts sobre alguns destes aqui no blog, se tiveres curiosidade diz e eu encontro o link!

      Quanto ao Choupana - confesso que não tenho paciência para esperar! Anos depois de ter aberto, ainda é caótico... Vou sempre em horas mortas (quando tenho folgas à semana, por exemplo, ou fim de semana muito cedo). Fins de semana à tarde é um caos!

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    2. Tens razão nisso, era um entrar e sair de gente na vida dela e no Hotel Chelsea, por isso, tem de referir muitos nomes.
      Do Hemingway e da Angelou vou querer ler de certeza, porque são mesmo escritores, e eu gosto é de textos bem escritos e menos de fait divers. Ainda estou para ler Nick Hornby e o Bell Jar, por isso, não posso pronunciar-me muito a esse respeito.
      Já viste que editaram um novo conto da Plath? "Mary Ventura and the Ninth Kingdom"? Já tentei ler a colectânea Zé Susto duas vezes e não consigo entrar na escrita nem por nada.
      Paula

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    3. É isso, percebo o lado do name-dropping mas sinto que ajuda a dar um ambiente, um espaço, a toda a narrativa.
      Não sabia desse novo conto - li quase tudo dela e confesso que adoro :) o próprio The Bell Jar é biográfico!

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  2. Óptima introdução ao post, uma das melhores letras, diz muito
    Também gosto da foto, clássico CD :p já agora, recomendo muito o Trampin' também, mas é muito diferente do Horses
    Que concerto esse, muito muito bom mesmo, grande actuação, grande artista, vive a música completamente, marcou-me
    'São pessoas que desistiram do conforto, da segurança, da família, para se tornar artistas.' não deve ser nada nada fácil
    A foto que publicaste de ambos é incrível
    'I imagined myself as Frida to Diego' agora que já leste alto livro sobre a Frida já sabes quem é o Diego e como essa relação era destruidora e criadora ao mesmo tempo :p
    Não que eu 'precisasse' de ler este parágrafo porque já queria ler o livro antes mas damn, gostei muito Ba:
    'A estética, a força de Patti Smith compelem-me absurdamente. A cantora, a poetisa, a força, a agressividade, o não-polido do seu trabalho. No entanto, a sua sensibilidade poética ressoa na sua prosa, que é lindíssima, genuína e sincera. E isto de uma pessoa que não aprecia poesia - mas é um livro tão bem escrito que se ultrapassam esses receios.'
    Cheguei à parte em que publicaste também o vídeo do Horses e tive de ouvir enquanto lia o resto do post :p e estava a ouvir James Blake! Mas Patti é Patti, esta música tem tanto poder em tantos sentidos, incrível, e para mim é daquelas perfeitas para um dia perfeito de festival, que foi o caso, recordarei sempre com muito carinho esse concerto
    De volta ao post! As fotos são muito boas
    Referes já perto do fim '(...) Patti Smith faz um trabalho incrível ao narrar a sua amizade, a sua relação amorosa, o seu trabalho enquanto artistas, as drogas, a arte, a música, a cultura, o processo criativo.' mas no início do post referes 'Ressalvo desde já que não se descobre muito sobre a carreira musical de Patti Smith nesta obra, nem sobre o processo da escrita das suas canções', em que é ficamos? :p :$ percebe-se o processo criativo ou não? Se bem que isso é um pouco irrelevante em relação à obra no seu todo mas queria saber porque não percebi Ba desculpa
    O post é lindíssimo, tenho de ler este livro

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    1. Excelente concerto de facto, adoro o álbum e este seu início marcante :p
      A vida que ela relata não é fácil, tem muita pobreza, muita privação, mas dá para perceber que o que ela e o Robert faziam era por amor à arte, e isso é muito bonito.
      Qual das fotos? Presumo que a primeira, pelo resto do teu comentário :p são fotos que estavam no livro e das quais gostei muito e achei que fazia sentido partilhar no post também!
      De facto é uma comparação interessante, a do Diego e da Frida!
      Horses, horses, horses! Recordarei também com muito amor o facto de me teres dado o CD, que tive durante muito tempo no carro, na altura, e voltei a ter agora
      Portanto: ela não fala muito sobre o seu processo criativo em termos musicais, mas enquanto artista plástica fala. Ela dedicou-se à música já tarde, tendo antes tentado desenho e pintura e afins. Fiz mais sentido? :$
      Tens sim :p

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    2. Quando me referi à foto era à primeira mas apenas porque não tinha vista a outra, gosto das duas
      Qual ou quais os cd's que tens no carro agora?
      Fizeste sim, e até aposto que fizeste antes, eu é que não tinha percebido, mea culpa; obrigado pelo esclarecimento Ba

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    3. Noted :p
      O dos Beatles mas tenho de mudar que já está na altura :$
      Possivelmente mea culpa, por não ter sido explícita, mas tua Bá :p

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