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Purple Hibiscus

A minha primeira experiência a ler Chimamanda Ngozi Adichie não foi a mais favorável.


Tinha este livro na estante há mais anos do que me orgulho de dizer, e todos os anos dizia que era desta que me ia estrear a ler a autora; no entanto, e ironicamente, quando Querida Ijeawale se cruzou no meu caminho e deixou um leve sabor a desilusão, decidi que devia mesmo ler a sua ficção.

De facto, todos elogiam grandemente Adichie como uma excelente escritora - mais pela sua ficção, pelo que compreendo. E decidi começar pelo início, pelo seu primeiro livro.

A narradora é Kambili, uma adolescente de 15 anos, que vive com o irmão Jaja, a mãe Beatrice e o pai Eugene. Eugene é um industrial rico que vive na cidade de Enugu, um homem extremamente católico, muito generoso com a comunidade, alimentando os pobres, financiando os estudos e pagando tratamentos caros aos vizinhos e amigos, um patrono na igreja de St. Agnes, que frequentam, um homem que apregoa a justiça no seu jornal. É uma família que parece perfeita quando vista de fora.

Mas Eugene é um homem muito complexo e, no fundo, é ele quem dirige a narrativa. Eugene é extremamente religioso, tem padrões de perfeição muito elevados, e vê a sua família como uma extensão dele mesmo; assim, é-lhe fácil dar à comunidade, mas reger a sua família com regras de medo e de violência, bater na mulher grávida, espancar a filha quase até à morte e mutilar o filho.

Gestos após os quais chora, demonstrando um enorme afecto, como se não quisesse castigar a família, mas fosse impelido a fazê-lo por uma força maior. É uma casa onde não há alegria, onde tudo é regulado (os filhos têm horários que devem cumprir), e Eugene considera o próprio pai como um pagão que vai para o inferno, por seguir a religião tradicional (não deixando, portanto, os filhos falar com o avô).

"Everything I do for you, I do for your own good," Papa said. "You know that?"

E é uma personagem super interessante, porque é óbvio que foram os seus estudos num colégio católico o tornaram assim, que o danificaram a esse ponto, e é fácil odiar Eugene - mas também é fácil ter pena dele.

A narrativa começa pouco depois de um golpe na Nigéria e do homicídio do editor do jornal de Eugene. Ifeoma, a irmã viúva de Eugene, professora universitária em Nsukka, convence-o a deixar Kambili e Jaja passarem uma semana com ela e os seus três filhos, prometendo uma excursão a um local onde havia rumores de aparições da Virgem Maria. Ifeoma é também católica, mas tem uma abordagem muito diferente da religião, permitindo aos seus filhos que vejam televisão e que vejam o avô, Papa-Nnukwu.

Embora a família de Ifeoma viva de forma muito menos confortável a nível financeiro que a família de Eugene, não é a casa pequena ou a relativa pobreza que faz com que Kambili e Jaja se sintam como peixes fora de água na primeira visita à tia: é a alegria, a abertura, a confusão, o barulho. Jaja rapidamente se adapta - mas Kambili, com receio do desgosto do pai, recusa-se a fazer parte. Quando surge o Padre Amadi (que visita as famílias de Nsukka, incluindo a da tia Ifeoma), Kambili apaixona-se por ele, por um homem que fizera um voto de castidade, mudando, um pouco, a sua vida.

We did that often, asking each other questions whose answers we already knew. Perhaps it was so that we would not ask the other questions, the ones whose answers we did not want to know.

A primeira visita é breve, mas a primeira de muitas, por razões variadas que não irei dar spoiler; mas, aos poucos, a vida materialmente mais difícil, mas em geral mais fácil, informal e leve, torna-se mais atraente para Kambili do que a vida de Enugu. Ifeoma encoraja Kambili e Jaja a fazerem mais, mostra-lhes uma outra maneira de viver em família, apresenta-lhes os primos que mal conheciam, e Kambili começa a crescer. A casa da tia apresenta-se como uma salvação ao mundo do pai. Acrescentando-se, é claro, a ideia de ver o Padre Amadi.

It was what Aunty Ifeoma did to my cousins, I realised then, setting higher and higher jumps for them in the way she talked to them, in what she expected of them. She did it all the time believing they would scale the rod. And they did. It was different for Jaja and me. We did not scale the rod because we believed we could, we scaled it because we were terrified that we couldn't.

E lentamente, Chimamanda Ngozi Adichie relata a tragédia de ambas as famílias, em Enugu e em Nsukka, levando a um final triste e inesperado, em que a promessa de mudança política na Nigéria não parece trazer muito de novo. A narrativa oscila entre a ameaça da violência doméstica e a violência política.

The educated ones leave, the ones with the potential to right the wrongs. They leave the weak behind. The tyrants continue to reign because the weak cannot resist. Do you not see that it is a cycle? Who will break that cycle?

A Nigéria. O retrato que a autora nos oferece do seu país é vívido, com palavras em Igbo, comida, a religião tradicional do avô, outros aspectos culturais, mas estes aspectos são-nos apresentados por partes, sem possibilitar uma construção inteira do retrato do país. Mas são visíveis a corrupção, as manifestações, a falta de electricidade ou água ou gasolina, as estradas, as igrejas... e, é claro, o golpe militar recente, que piora as circunstâncias da família de Kambili (de ambas as famílias).

A situação política é apenas um enquadramento, que leva Ifeoma a perder o seu emprego na universidade por suspeitarem que apoia as manifestações dos estudantes, Eugene que tem de imprimir os seus jornais de forma escondida para escapar às autoridades.

As we drove back to Enugu, I laughed loudly,above Fela's stringent singing. I laughed because Nsukka's untarred roads coat cars with dust in the harmattan and with sticky mud in the rainy season. Because the tarred roads spring potholes like surprise presents and the air smells of hills and history and the sunlight scatters the sand and turns it into gold dust. Because Nsukka could free something deep inside your belly that would rise up to your throat and come out as freedom song. As laughter.

Kambili enquanto narradora foi interessante de ler: não é uma personagem particularmente especial ou interessante, e é até um pouco frustrante. Mas é nela que se centra o mais trágico do livro: o facto de ela não se aperceber do quanto o seu pai a oprime, a forma como o ama, idolatra e respeita incondicionalmente, o seu respeito e orgulho. A forma como tenta agradá-lo de todas as maneiras, mesmo as mais incoerentes e incompreensíveis.

E Kambili nunca usa a palavra opressão, mas a opressão está em todo o lado: no pai, é claro, mas também na religião, no calor abrasador do verão, no silêncio da casa onde vive, porque todos têm medo de dizer as verdades, e o regime político opressivo, que tenta também esconder a verdade. É neste meio que Kambili aprende a rir, a correr, a apaixonar-se.

Não fiquei particularmente fã do Padre Amadi; o seu afecto por Kambili, jovem, impressionável e claramente frágil, deixou-me algo desconfortável - especialmente porque a autora o pintou numa luz demasiado favorável, como que apoiando os seus gestos, mesmo quando estes pareciam ir demasiado longe.

O próximo a ler, da autora, será Half of a Yellow Sun.

4,5/5

Podem comprar uma outra edição em inglês aqui, ou em português aqui.

Comentários

  1. Eu, que fiz o percurso contrário, primeiro este livro e só depois os de não-ficção sobre feminismo (versão 1.0!), comecei logo por ter mais fé nas capacidades da Chimamanda como escritora, mas nunca li mais nada dela. Fui totalmente transportada para a Nigéria, sempre com o coração apertado, a pressentir tragédia a cada esquina.
    A Kambili parece sofrer um pouco de Síndrome de Estocolmo, não é? Mas gostei muito da evolução dela, mesmo sem ser nada radical. E a existência do pai do Eugene como símbolo do mais tradicional face ao filho quase totalmente ocidentalizado também é muito interessante.
    Paula

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    1. Eu tinha este (e outros de ficção) há que tempos na estante, mas deu-me para começar pelo outro... de facto, achei a sua ficção muito superior à não-ficção e fiquei surpreendida.
      O ambiente da Nigéria é extremamente opressivo, de forma espelhada na casa de Kambili - a relação dela com o pai, a forma como não o quer desiludir, mesmo quando ele quase a mata... ela de facto não evolui de forma muito radical (ao contrário do irmão), e foi esse não-crescimento (bem como o padre) que me impediu de dar 5/5.
      Gostei muito do contraste de Eugene com o pai, e das várias formas de ver a religião!

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  2. Respostas
    1. Vais a tempo :) esta também foi a minha primeira experiência "a sério"!

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  3. A maneira como escreves é sublime, gostei muito deste post, já um dos meus favoritos
    Já tinha curiosidade quanto à escritora mas agora este livro passa a estar numa lista imaginária de must read um dia, espero que não num tão distante futuro
    P.S. Gostei do pormenor da foto :p

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    1. Oh, obrigada :$
      Sabes que para ler, basta pedires :p gostei muito mais deste do que do não-ficção que tinha lido!

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  4. Quero fazer como tu e começar a ler este primeiro livro, mas já li os dois de não-ficção.

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    1. Eu não li o da Ted Talk (e agora nem tenho mais curiosidade), mas deste gostei muito :)

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  5. Eu estou basicamente a ler tudo anti-cronologicamente. xD Comecei pelo Americanah, depois li o Half of a Yellow Sun e agora falta-me este. O Americanah é o meu preferido, o Half of a Yellow Sun foi bom, mas nada de especial, espero gostar deste. :)

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    1. Já eu tenho esses dois por ler :) irei com menores expectativas para o Half of a Yellow Sun!

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