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A morte e a morte de Quincas Berro d'Água

As imensas saudades que tinha de ler Jorge Amado.


A morte e a morte de Quincas Berro d'Água destaca-se pela sua diminuta dimensão: tem menos de 100 páginas. E é nessas menos de 100 páginas que se vê o génio de Jorge Amado, porque contêm a energia, excitação e toda a magia que muitas outras estantes repletas de livros não conseguem alcançar.

A narrativa é simples: Joaquim Soares da Cunha, em tempos homem de família, funcionário público, na última década da sua vida decidira chamar jararacas à mulher e à filha, fugir da vida respeitável, mudar de nome, abandonar a família, tornar-se "rei da gafieira", "patriarca da zona do baixo meretrício", viver na pobreza. Logo no início do livro, e como indica o título, de certa forma, é encontrado morto. Morte natural, sorriso na cara.

A filha, Vanda, e o genro, Leonardo, aparecem de imediato, com intenções de rezar pelo falecido e dar-lhe um funeral respeitável, embora discreto, pois já tinham dito a toda a gente que Quincas havia falecido, para poupar a família de vergonhas. Por isto, e apesar de a morte efectiva do pai lhes poupar futuros embaraços, existe o delicado balanço do quanto gastar, de quanta pompa e circunstância deve envolver o rito fúnebre, de modo a que ninguém possa falar mal deles - mas também de modo a não chamar a atenção sobre o funeral.

Vanda e Leonardo arranjam roupa decente para Quincas, mas não demasiado decente, e nada de roupa interior (afinal de contas, é para o enterrar); e decidem mantê-lo a velar no seu apartamento decadente até ao funeral, no dia seguinte. Juntam-se à cerimónia Marocas e Eduardo, irmãos do falecido.

Pena que ele estivesse morto e não pudesse ver-se ao espelho, não pudesse constatar a vitória da filha, da digna família ultrajada.

De noite, por ser um mau bairro, as mulheres da família vão para casa, ficando lá os homens; e é aí que chegam os amigos vagabundos de Quincas. Estes estranham a falta de cadeiras, comida, bebida para quem venha dar os seus sentimentos. Leonardo, desconfortável, vai-se embora, e Eduardo segue-o pouco depois, sob a promessa que os amigos velem o corpo.

O álcool começa a tomar conta do velório; os amigos começam a discutir quem irá herdar a prostituta favorita de Quincas. Julgando o corpo infeliz, começam a oferecer-lhe bebida, tiram-lhe as roupas novas e colocam-lhe as suas roupas antigas. De seguida, levam-no para dar uma volta no bairro, para uma última noite.

Quincas Berro D'Água, divertidíssimo, tentava passar rasteiras no cabo e no negro, estendia a língua para os transeuntes, enfiou a cabeça por uma porta para espiar, malicioso, um casal de namorados, pretendia, a cada passo, estirar-se na rua.

Por fim, Quincas Berro D'Água acaba por se atirar ao mar, para nunca mais ser visto, decidindo, por si mesmo, o seu enterro, culminando assim o livro na sua segunda morte.

Os vagabundos, prostitutas e pobres do bairro de lata da sua segunda vida adoravam-no profundamente, e aceitaram esta como a sua morte oficial - aquela que ele escolhera. Fora o seu pai, o seu líder, o seu mentor, de braços sempre abertos para todos, sorridente, amigo - sentimentos e gestos nobres, que haviam causado vergonha à sua família.

Quincas Berro D'Água passa o livro morto, mas está mais vivo que qualquer outro personagem nesta história.

4,5/5

Aparentemente esgotado. Tentem alfarrabistas ou contactar directamente a Europa-América.

Comentários

  1. Pareceu-me interessante, como a Europa-América faliu só ressurge quando outra editora pegar nele

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    1. Carlos, experimente contactá-los directamente. Apesar de falidos, ainda operam. Eu adquiri este livro directamente algures nos últimos dois anos: ou na Feira do Livro de Lisboa, ou na de Belém. É capaz de ter sorte!

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