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Circe

Peguei neste livro no seguimento das minhas dificuldades em ler.


O livro chegou à minha estante há quase um ano, através de uma caixa do Books That Matter, mas eu já ouvia maravilhas várias sobre o mesmo à data. Tinha curiosidade com o conceito, porque mitologia grega é algo que me desperta bastante interesse. Não foi à toa que utilizei horas várias da minha vida a jogar Zeus (que, já agora, vou procurar reinstalar no computador, apesar de já estar a tentar, em vão, usar algum tempo livre para estudar italiano).

Já li alguns dos clássicos gregos, embora muito poucos; dos latinos, a minha vergonha é maior, mas há lacunas várias que quero colmatar. Há uns anos, como poderão procurar aqui no blog, tive uma fase em que li algumas das peças e obras cruciais do cânone grego, mas faltam-me os épicos de Homero (fora os excertos d'A Odisseia que dei em português no 7º ano, em conjunto com a versão de João de Barros que não me entusiasmou), que quererei ler.

Aqui, temos a história uma das personagens mais marcantes d'A Odisseia, através do seu próprio ponto de vista: Circe, a bruxa que transformava homens em porcos. Circe é uma personagem curiosa: desprezada, temida, uma mulher com poder suficiente para aterrorizar homens. Uma mulher tão poderosa que tem de ser vencida por Odysseus e levá-lo para a cama para que a história possa continuar.

Porque os épicos são masculinos, é claro.

Emma Hart (Hamilton) como Circe, de George Romney

Apesar das maravilhas que tinha lido sobre o mesmo (e mesmo os relatos menos espectaculares, como o da Sara), fui com expectativas algo baixas, desejando uma leitura fluída que me permitisse voltar a encontrar a diversão na leitura. Não vou dizer que o livro me agarrou de início: não o fez; mas algo mais para o fim parece ter funcionado. Aqui, não temos um re-telling d'A Odisseia de um novo ponto de vista; temos o conjunto de histórias sobre uma personagem, Circe, do seu próprio ponto de vista, com um olhar moderno sobre o porquê de uma deusa, bruxa, ter ficado tão amargurada que transformava homens em porcos, só porque sim.

When I was born, the name for what I was did not exist.

Mais que isso: o encontro de Circe com Odysseus é apenas um pedaço desta história (apesar de ser um pedaço grande), que começa no palácio do Deus-Titã-Sol, Helios, pai de Circe, com o seu nascimento, a sua infância com pais, tios e irmãos que a tratam com indiferença ou crueldade; mesmo o irmão de quem é próxima, ela reconhece mais tarde ter sido apenas um intervalo na sua solidão, pois não viria a querer saber dela mais tarde.

Toda a família a despreza; o pai arranja futuros brilhantes para os irmãos, Pasiphäe, que casa com o Rei Minos (e viria a dar à luz o Minotauro), Aëetes, que viria a ser rei de Colchis e pai de Medea.  Mas não há futuro para Circe; Circe é vista como inferior, sem dons visíveis... até ao dia em que descobre o seu poder de transformar, e transforma uma ninfa, Scylla, num monstro de seis cabeças. Com medo, Zeus e Helios concertam o ostracismo de Circe para a ilha de Aiaia, onde vive séculos no exílio.

E sim: o Minotauro, Jason e Medea são todos figurantes nos milénios da vida de Circe. Tal como Hermes, Dedalus, Prometeus... Muitas das cenas relatadas neste livro são das mais conhecidas e importantes na mitologia grega, e vemos o papel de Circe em todas elas, a sua visão do momento. Vemos como Circe ama, como perde, como sente dor e determinação. Como reflecte nas crueldades que comete, como sente a imortalidade que não pediu. Não é humana, mas tem sentimentos que o são.

I thought once that gods are the opposite of death, but I see now they are more dead than anything, for they are unchanging, and can hold nothing in their hands.

Além dos lobos e leões que a acompanham por vários séculos, começam a aparecer ninfas, marinheiros que ela recebe com vinho e comida e que a julgam mortal. E após um encontro menos feliz, Circe começa a atacar.

Circe é poderosa, e é ela mesma. Sente-se que ao longo da obra procura aprovação - porque nunca a teve -, que encontra algum consolo nos seus poderes. O livro peca por ser episódico, mas creio que isso se deve ao facto de Madeline Miller ter pegado numa personagem e procurado encaixar os vários episódios (muitos deles fragmentários e que não chegaram na totalidade aos nossos dias) numa narrativa. Não adorei a personagem, e também não adorei o fim; mas gostei da forma como me levou a procurar mais, a pesquisar e a querer reler muito sobre a Grécia Antiga, as várias versões dos mitos, e como foi dada vida a uma personagem misteriosa.

4/5

Podem comprar esta edição na wook ou na Bertrand, ou a edição portuguesa, também na wook ou na Bertrand

Comentários

  1. Que alívio teres gostado!
    Concordo contigo, o livro demora um pouco a arrancar, mas chegou uma altura em que não consegui largá-lo, e realmente é bastante episódico, mas gostei imenso de reconhecer as personagens da mitologia com quem ela se foi cruzando, e sabendo por terceiros o desfecho que cada uma das histórias. Achei a Circe corajosa e inteligente, não ficando à espera que ninguém a ajudasse, sentindo por vezes remorsos pelas magias praticadas. Para mim, o ponto alto é o "pacto de não-agressão" que estabelece com Penelope e a relação com o próprio filho. Mãe de rapazes, nada a fazer... :-)
    Paula

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    1. Eu demorei uma semana a ler a primeira metade do livro, e dia e meio na segunda metade :) também pelo meu mood, creio.
      E é isso: sempre gostei de mitologia grega, pelo que o lado de rever os personagens, vê-los de um ponto de vista num episódio concreto... Foi muito interessante. Até porque há tantas versões de tantos episódios mitológicos, que acho que o retelling é interessante :) hei de pegar no da Pat Barker em breve e vou comprar o outro da Miller, que já me disseram ser melhor.
      Gostei da parte dos remorsos, do "hindsight" sobre as suas práticas: acho que a humanizou muito e tornou uma personagem mais inteligente, apesar de ter sentido nela algumas falhas. Mas mesmo os deuses podem ter falhas, não é? :)

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    2. Se tinham falhas! Eram os seres mais vingativos, invejosos e mesquinhos! Mas é aí que está a graça, senão, não havia tantas histórias.
      Também tenho esse do Aquiles por ler. E também ouvi falar bem dos da Natalie Haynes. E do Resgate do David Malouf. E de House of Names do Colm Tóibín. Tantos e o tempo sempre a fugir...
      Paula

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    3. Fico contente que a tua experiência tenha sido boa :)

      (Agora tens de experimentar o Normal People..Eheheh. Tenho toda uma lista de livros que são amados mas que eu detestei. O contrário acontece-me por exemplo com o Emma da Austen, com quem muita gente antipatiza enquanto eu gosto tanto.)

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    4. Esse não vou experimentar :) mas adoro o Emma! O Emma é o meu segundo Austen preferido! (Não gosto do Persuasion, acho o Mansfield Park medíocre, o Northanger Abbey é mal-amado mas hilariante, o Sense & Sensibility não adorei tanto como o restante mundo, o preferido é o cliché P&P).

      Acho que a questão aqui foi a mitologia grega, porque gosto. Não creio que o livro me tivesse chegado "tão cedo" (ou de todo!) se não tivesse adquirido a caixa do Books That Matter de Setembro (?) do ano passado; e sei que se a história fosse sobre uma tipa banal a viver numa ilha e a receber visitas aleatórias, a minha experiência não tinha sido a mesma. Agora, estou a ler aquela novidade da Quetzal, que no fundo é uma reedição, mas veio mesmo com bom timing e claro que não resisti: as traduções de poesia grega clássica do Frederico Lourenço...

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    5. O esse era o "Normal People"; isto é confuso e a resposta acima era para a Sara.

      Para a Paula: e a Mary Renault? E a Penelopiad da Atwood? Descobri que há um mundo inteiro disto dos retellings, além dos textos originais, claro. O Lysistrata continua a ser das minhas obras preferidas. É tão bom!

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    6. Quando era adolescente, emprestavam-me imensos livros para as férias de verão, mas eu não apontava nada (Goodreads, where were you?), mas lembro-me da capa do Lisístrata e de grande parte da Ilíada. Não ponho as mãos no fogo, mas são-me mesmo familiares.
      P.S.- Estava muito céptica, mas a Sally Rooney conquistou-me. Dei 4* estrelas a ambas as obras dela, mas comovi-me mais com o Normal People. Não me lembro de todos os livros que li, mas ainda nem lembro de andar no secundário...
      Paula

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    7. Haha, eu quando descobri o Goodreads também já era maior de idade... muita leitura ficou por anotar :)
      (re)Lê o Lysistrata! É magnífico! O Medea do Euripides é bom também.
      Não devo chegar à Sally :) tenho demasiada coisa para ler, mesmo demasiada...

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  2. Ora cá está: amei o Persuasion! É o meu preferido a seguir ao Emma. O orgulho gostei mas não tanto como estes dois (o Darcy é altamente sobrevalorizado) e o Northanger Abbey também gostei mas não tem a complexidade em especial dos dois primeiro. É normal pois penso que foi o primeiro que ela escreveu. Sense and Sensibility e Mansfield Park ainda não li. Já ando há que tempos para fazer uma leitura de todos os livros por ordem cronológica, acho que seria interessante.

    O problema para mim é que devem existir sei lá quantos livros sobre\ envolvendo mitologia muito mais interessantes e que não me obriguem a engolir toda aquela treta YA. É como tentarmos meter a história do A Culpa é das Estrelas a passar-se em Marte para o tornar mais interessante. Talvez se torne um pouco mas vai continuar a ser um YA medíocre, tal como este. Incluindo as doses industriais de girl hate. É certos sentidos é muito parecido com o Normal People...Comprei o da Pat em inglês, mas ainda não li (já agora: detestei o Otelo, achei O Amante de Lady Chatterley uma porcaria, nunca acabei o A leste do Paraíso xD)

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    1. Hah! :) achei o Persuasion uma seca, ainda pior que o Mansfield Park, que é sensaborão. Li todos há muitos anos - acho que li Austen algures entre 2006 e 2012. Alguns talvez ganhassem com releitura.

      Sim, compreendo perfeitamente isso. Haverá coisas melhores, e sem tanta inimizade, sem o "transformei este gajo num deus para poder ficar com ele e agora ele gosta daquela estúpida! és um monstro, Scylla, um monstro!!!"; valeu pelas referências, acho, das quais gostei muito. Nunca tinha lido nada assim, mas cada vez descubro que existem mais textos no género.

      Odeio o The Fault in Our Stars. Odeio absolutamente. Li há uns anos - até há review aqui - e achei estúpido e ofensivo. Gostei muito do Othello, o Amante achei medíocre. Do Steinbeck só li obras mais curtas, mas não sou fã da Pérola :)

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  3. Foi precisamente isso que me fez não gostar mesmo do livro...Se não fosse isso mesmo tendo achado um pouco aborrecido e sem estrutura até engolia, mas não é admissível autores e autoras continuarem em pleno século XXI a passar esse tipo de ideias, quando já somos tão privadas de ver e de ler sobre relações femininas positivas e o facto de a acção se passar há muito tempo atrás não é desculpa...Concordo que o Culpa chega a ser ofensivo de tão mau, mas no modo com retrata as mulheres e as suas relações este não se fica atrás...Por acaso este ano já dei uma estrela a alguns, mas também quando gosto a sério dou cinco estrelas sem problemas.

    Tentei ler duas vezes a Pérola e foi uma tortura! Gostei do Viagens com Charley e das crónicas de guerra, mas quando chega à ficção a coisa parece que trava...Mas também o A Leste teve azar pois comecei a lê-lo quando já estava com um pé nas autoras, então desisti dele a meio para ir ler um magnífico livro da Pearl S. Buck (mais tarde li outro dela e não gostei)

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    1. Eu percebo; incomoda e é desnecessário quando estamos em 2020 (ou em 2018, quando o livro foi publicado)... mas, por outro lado, foi precisamente isso que aconteceu no mito. Circe estava apaixonada pelo Glaucus e, por ciúmes, transformou a ninfa num monstro. E, por isso, perdoo. Acho que a relação da Circe com o Glaucus previamente à transformação a humanizou um bocado. Mas sim, eu percebo isso. Acho que foi pelo enquadramento (e por eu ADORAR mitologia greco-romana) que perdoei isso.

      Acho que o do John Green foi pior para mim porque, à data, o meu pai estava em tratamentos para linfoma. Tudo aquilo me pareceu parvo e pouco realista e feito para apelar ao sentimento. Os outros do John Green achei muito fracos e parvos e manic pixie girl e sem piada, mas esse achei muito mau.

      A Pérola é mau; só li a ficção curta do Steinbeck. O Of Mice and Men é muito bom (opinião, é claro), o Cannery Row e o To a God Unknown idem.

      Quais os da Pearl? Tenho o da Terra Bendita numa edição/tradução antiquíssima da Livros do Brasil...

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    2. Certo, mas o livro não é um recontar da história? Se é para escrever exactamente como o original então qual é o ponto? Para isso leio os textos clássicos que pelo menos estão melhor escritos (o girl hate está presente desde o princípio ao fim do livro)

      Não sei se já leste Angela Carter, mas recomendo the bloody chamber and other stories - são contos baseados em histórias tradicionais e são fantásticos. O livro da Pearl que li e gostei muito foi The Exile (é sobre a mãe dela) e o que li depois e não gostei foi The Hidden Flower. Depois deste ainda não experimentei mais nenhum dela.

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    3. Talvez seja mais um novo point-of-view que necessariamente um retelling; assim, justifica-se. O que eu acho que não se justifica é o marketing do livro como sendo feminista, que não é. Apenas achei um compilar mais moderno de várias narrativas de uma personagem específica, geralmente vilificada, mas com sentimentos mais humanizados e "dados" ao leitor para entender.

      Isso e entretém QB.

      O The Bloody Chamber li sim, há muitos anos, e gostei bastante. Desde então li o Passion of New Eve que não gostei tanto, e o The Magic Toyshop, que adorei (tenho reviews de ambos por aqui). O The Bloody Chamber diria que é mesmo um retelling, porque pega nos elementos tradicionais das histórias e altera-as. A title story é, para mim, magnífica porque é a mãe (!) a salvá-la. Nem é a própria - é a mãe.

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  4. É verdade, e há um conto em que a capuchinho vermelho se envolve com o lobo! Tenho mesmo de ler mais alguma coisa dela, mas o que tenho aqui em espera é o Nights at The Circus. Vou ficar atenta a esses dois.

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  5. Eu gostei muito de Circe, pela recriação da história de uma personagem feminina "maldita" na mitologia. Achei que a componente emancipatória da narrativa foi bem conseguida, e ao contrário da Bárbara, gostei do final, pela sua tranquilidade.

    Em Circe admirei também a narrativa descritiva de sensações, cores, cheiros, muito detalhada e palpável.

    Em falar em retellings da mitologia, ainda hoje descobri mais um, escrito por Mary Shelley sobre Perséfone e Midas. Sou uma amante de mitologia, mas só há cerca de um, dois anos descobri o mundo dos clássicos recontados. Na mira tenho Cassandra: A Novel and Four Essays de Christa Wolf.

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    1. Percebo a perspectiva de ela finalmente encontrar paz numa vida tão tumultuosa e turbulenta, mas achei um final talvez fácil demais :) claro que, com o material de base para a obra, e não querendo modificar o mito - que não foi o objectivo da autora, ao contrário dos retellings da Angela Carter, por exemplo -, é normal que termine assim...

      E sim: gosto da ideia de dar a perspectiva à mulher maldita. Gosto muito do "Wide Sargasso Sea" por esse motivo (até gosto mais que do Jane Eyre).

      Tantos retellings, tão pouco tempo!! :) vou anotar esses!

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