Avançar para o conteúdo principal

We

Desafio para Junho: um clássico de sci-fi ou fantasia.


Ler We não foi só responder ao desafio; foi também o cumprir de uma leitura desejada há mais de dez anos. Quando, há mais de dez anos, li 1984, estava ainda a tentar compreender qual o cânone dos clássicos (ocidental, claro está) e comecei a pesquisar e a querer descobrir mais livros e leituras. Foi aí que surgiu o nome de Yevgeny Zamyatin, e a obra que inspirara George Orwell (e, segundo este, Aldous Huxley, mas o Huxley nega).

Estamos no século XXVI, e não em 1984; há um Estado unificado, o OneState, vedado do "exterior", selvagem, por uma grande muralha verde. Em vez de um Big Brother, há um Benefactor. A ideia é que a liberdade e a felicidade são incompatíveis; é um mundo gerido e ditado por matemática, lógica, tabelas horárias, taylorismo - sem imaginação, emoção ou sonhos (mesmo a dormir - sonhos são sinal de doença mental). Não há individualidade; há supervisão e controlo constantes por parte do Bureau of Guardians, apartamentos de vidro onde se pode ser observado a todo e qualquer momento, menos quando há permissão para baixar os estores: é o momento em que o sexo foi autorizado, a partir de candidaturas e bilhetes cor-de-rosa que permitem estas "visitas conjugais".

Esta nova ordem mundial enfatiza as necessidades do Estado em detrimento das necessidades individuais, e a beleza da uniformidade (também vestem todos o mesmo, "yuny", diminutivo de "uniform") mais que da individualidade. Um Benefactor que fala em "we" de modo a que todos acreditem fazer parte de um conjunto, de um todo, sem verdadeiramente fazerem parte. É um vazio da substituição da alma, do amor, pela razão, pela lógica, pela matemática - até as pessoas são "Numbers", e não pessoas. Tudo é racional e racionado, regimentado, seguro ao ponto de ser .opressivo. Os horários são regulados até ao ponto do absurdo.

Those two, in paradise, were given a choice: happiness without freedom, or freedom without happiness. There was no third alternative...

Este livro é narrado na primeira pessoa por um engenheiro, D-503, que está a construir uma nave espacial chamada INTEGRAL - porque o OneState decidiu que se quer expandir para o resto do Universo. D-503 está a escrever um diário sobre a sua vida (a vida do OneState, no fundo) e as suas experiências, para levar consigo na sua viagem. Vai contando as coisas de forma muito simples e directa, lembrando-se, por vezes, que talvez o leitor viva do modo "arcaico" e não saiba como são as coisas no OneState (por exemplo, que crianças já não são "propriedade privada", que os nomes são letras e números, as letras das mulheres são vogais...).

Para D-503, a vida é ideal, previsível - ele é engenheiro e aprecia a perfeição matemática atingida. Como tal, não compreende que a sociedade em paz onde vive não tem alma, está estagnada - e tem muito mal. Está muito feliz por lhe ter sido dada a tarefa de construir a nave que irá levar este modo de vida ao resto do universo. Aqui, os "maus" já ganharam, há muito tempo, e já instalaram o seu modelo de sociedade - ao ponto de não serem particularmente questionados.

Até que surge I-330, uma mulher que o intriga, que não cumpre as regras, que o provoca - que causa tanto ódio nele, que só pode ser amor. Um pouco como Winston e Julia - D-503 descobre o seu lado humano, foge da precisão apática e desprovida de emoções de que tanto gostava e entra no mundo confuso e assustador da humanidade.

Nunca mais nada será o mesmo.

Now I no longer live in our clear, rational world; I live in the ancient nightmare world, the world of square roots of minus one.

Mas as pessoas ainda pensam, ainda sentem, apesar de ser ilegal - antes do thoughtcrime do Orwell. É impossível reprimir totalmente a vontade própria, e surge daí a resistência. Assim, temos personagens que procuram resistir ao OneState, lutar contra a corrente - que são diagnosticadas com uma doença grave, "desenvolver uma alma" -, e assim que a revolta tem início, avançamos para um fim que, como o de 1984, acaba por não ser totalmente feliz. Mas a revolta continua, talvez ganhe fôlego, e não importa que percamos o nosso herói. Ganhamos esperança. O que causa a revolução?

As distopias, regra geral, têm lugar no futuro, mas nunca analisam o futuro, pois não? Zamyatin escreveu We em 1920, numa Rússia pós-revolucionária cuja sociedade estava em rápida mudança, com um Estado autoritário a substituir outro, através daquela que deveria ser a revolução final.

Mas, como I-330 diz - e é este o cerne do livro -, não há uma revolução final.

4/5

Podem comprar esta edição na wook ou na Bertrand, ou em português, na wook ou na Bertrand

Comentários