Há muito que queria ler Selma Lagerlöf.
Este desejo prende-se muito com o meu encanto pela Suécia, confesso, mais do que por ser a primeira mulher a ter ganhado o Nobel da Literatura; e este volume acabou por vir para minha casa como uma pechincha não planeada da Feira do Livro de Lisboa: estava a 5,00 Euros na Babel, aliado à curiosidade suscitada pelo título. Por que é que uma mulher sueca escreveria sobre um Imperador de Portugal em 1914?
Suécia rural, meados do século XIX. O agricultor Jan de Skrolycka não tem grande paixão pela vida, pela esposa Kattrina (com quem casou meio que por conveniência), ou pelo trabalho, e deve-se confessar que não estava particularmente entusiasmado com o nascimento de um primogénito - mas isto muda no dia de chuva em que conhece a sua única filha, a pega ao colo, e sente que ela será especial, porque o seu coração bate mais depressa.
Baptizada de Clara Bela (Jan inspirara-se no Sol), a menina faz a vida de Jan e Kattrina valer a pena. Os primeiros capítulos do livro, da infância de Clara Bela, são estórias delicodoces de vida rural, com um toque de contos de fadas e outro de realismo mágico, numa atmosfera que, aos poucos, absorve o leitor. Clara Bela cresce, e é a melhor amiga do pai, que cada vez mais confia na inteligência da filha.
Coisa curiosa: parecia que a pequenita de Skrolycka e o pai tinham sido feitos no mesmo molde, de tal maneira liam os pensamentos um do outro.
Coisa curiosa: parecia que a pequenita de Skrolycka e o pai tinham sido feitos no mesmo molde, de tal maneira liam os pensamentos um do outro.
A início, pensei que seria um livro infantil, por saber que é esse o teor de uma das suas obras mais conhecidas, apesar de a capa não denotar essa faixa etária. O livro muda drasticamente de tom quando o senhor feudal morre após um acidente e o novo dono da casa de Jan lhe apresenta uma conta que ele não consegue pagar. Clara Bela, com 17 anos, propõe aos pais ir para Estocolmo ganhar o dinheiro. Os pais julgam-na altruísta, mas a verdade (que Jan rapidamente percebe) é que ela queria conhecer o mundo.
Os olhos de Clara Bela erravam sobre léguas e léguas de horizonte. Via as igrejas brancas no alto das colinas abruptas da margem, fábricas e casas senhoriais aninhadas na verdura de parques e jardins, a larga bordadura das herdades na orla do bosque, o xadrez dos campos cultivados, o serpentear dos caminhos - e depois florestas até ao infinito.
(...) Por fim, estendeu os braços como se quisesse apertar tudo aquilo contra o coração, toda aquela grandeza, toda aquela riqueza e poder que até então ignorara.
Porque Clara Bela, a anti-heroína desta história, está presa a uma aldeia onde não pertence, e onde não cabe. Está presa pelo amor do seu pai. Apanha o barco, prometendo voltar em três meses com o dinheiro. Escreve uma carta aos pais, envia o dinheiro por intermédio de um terceiro, e durante largos anos ninguém sabe nada dela... excepto os jovens que passam por Estocolmo e regressam com rumores sobre a rapariga (nunca é dito explicitamente, mas é dado a entender que ela se prostitui).
Clara Bela liberta-se, portanto, às custas do amor do pai, que nunca recupera da dor de a perder, perdendo o contacto com a realidade e retraindo-se num mundo de fantasia em que a filha é Imperatriz de Portugal. E Jan, como pai, é obrigatoriamente o Imperador. Esta fantasia toma conta dele, e da sua vida, ao ponto de agir de forma enaltecida e "imperial" pela aldeia, onde os seus vizinhos lhe dão espaço para o fazer, por pena da sua perda.
- Toda a gente está ao corrente - disse. - Já é tempo de os pais saberem também o que se passa. Jan Andersson é um bom homem, mas estragou a filha com mimos. É uma coisa que me desespera, vê-lo aqui, semanas a fio, esperar uma...
Usou uma palavra tão feia para falar da menina de Skrolycka, que seu pai não quis repeti-la nunca, nem sequer em pensamento.
- Toda a gente está ao corrente - disse. - Já é tempo de os pais saberem também o que se passa. Jan Andersson é um bom homem, mas estragou a filha com mimos. É uma coisa que me desespera, vê-lo aqui, semanas a fio, esperar uma...
Usou uma palavra tão feia para falar da menina de Skrolycka, que seu pai não quis repeti-la nunca, nem sequer em pensamento.
Jan vive no pensamento do regresso da Imperatriz, e está pronto para esperar por ela pela eternidade. É uma história de amor, afecto, solidão, espera, de um homem que, por tanto amar a sua filha, só consegue lidar com a distância tornando-se no Imperador de Portugal.
No final, Clara Bela volta à aldeia, sem capacidade de ficar na aldeia, tal como não se consegue encaixar na vida moderna das cidades grandes. E não quer ficar, apesar da profunda doença do pai - e é preciso muito para que ela perceba que esta doença, todo o sofrimento, foram por amor.
A reter do livro: a realidade da vida rural sueca do século XIX, a sua estrutura de classes, com senhores feudais, agricultores, pescadores, muito definida por Selma Lagerlöf. A vida de aldeia, a hierarquia (do Senhor de Falla aos vagabundos), a bondade, as festividades, a igreja, as celebrações, os trolls e, especialmente, a forma como toda a gente aceita e consegue dar lugar às excentricidades crescentes de Jan.
E a forma como a doença mental é abordada - e como algumas das visões e alguns dos sonhos de Jan podem não ter de ser atribuídos à sua loucura.
É um livro para ler pela experiência; não é um livro que tenha adorado ler, confesso, mas é um livro do qual se retira muito, após a leitura. É um livro relativamente curto, mas que consegue incluir um vasto número de personagens, num ambiente que oscila entre a fantasia e o folclore.
Quero ler um livro da autora mas ainda não sei qual. Vamos ver se encontro algum na feira do livro :)
ResponderEliminarEu tenho agora dois outros na wishlist para a Feira do Livro, mas só devo comprar um: a Saga de Gösta Berling, ou A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson através da Suécia :) tenho muita curiosidade com o segundo, por ser infantil e ser o seu mais conhecido!
EliminarNão há como não gostar de conhecer a história do nosso país!
ResponderEliminarMas eu não sou sueca :)
EliminarNunca li nada desta autora, mas confesso que a tua opinião me empolgou! A ver se "tropeço" em alguma obra dela na minha biblioteca! Tenho tendência a derreter-me com histórias de pais e filhos, de de avós e netos, por isso não me importava nadinha de ler esta!
ResponderEliminarEu só li esta, mas tenho muita curiosidade com o restante! Talvez este, pela temática, seja o ideal para ti :)
EliminarTenho o Nils e As Lendas, mas ainda me senti impelida a lê-los. Tenho a impressão que vou achar tudo muito naif e tradicional. Gostava de ler todas as escritoras premiadas com Nobel, mas há algumas que não me atraem lá muito.
ResponderEliminarPaula
A julgar por este, será decididamente "tradicional"; tenho muita curiosidade com o Nils, ainda assim :) que, relembremos, é um livro infantil! Portanto é possível que esse lado esteja mais visível.
EliminarLi, no ano passado, Gabriela Mistral - pessoalmente, não recomendo. Poesia religiosa, basicamente...
O livro parece interessante mais pelo que tu dizes que se retira dele do que pela história em si. Pode ser que um dia destes venha parar cá a casa.
ResponderEliminarSonha mas Realiza
Eu comprei-o por um preço mesmo muito atractivo e, como tal, valeu a compra :) é mesmo um livro que vale mais pelo que se retira, eu acho, porque a leitura em si não foi particularmente empolgante!
EliminarDela apenas li "Os milagres do anticristo" gostei, pode ser para alguns quase ofensivo por de uma forma humorada mostrar as crendices e peripécias entre fé, religião e religiosidade popular na Itália rural bem no sul, embora o livro comece numa igreja que para mim é das mais belas de Roma e onde da última vez que lá estive sentei-me durante largo tempo apenas a apreciar o templo. Divertido qb.
EliminarCarlos, não conhecia esse. Está anotado para futura leitura! Muito obrigada.
EliminarNão conhecia o livro nem a autora mas pareceu-me uma leitura interessante :)
ResponderEliminarhttps://aritateixeira.blogspot.com/
Sem dúvida que o foi :)
EliminarÉ uma espécie de Tieta do Agreste, mas em sueco?
ResponderEliminarSemelhante na questão da filha que vai para a cidade tornar-se prostituta, diferente em tudo o resto. Pessoalmente, prefiro Tieta.
EliminarEstava a escrever sobre este livro e vim aqui procurar ao teu blogue e cá estava ele!
ResponderEliminarGostei muito do estilo de Lagerlof e com vontade de espreitar outras obras também. Achei a realidade da história bastante dura, mas a forma como está escrita é de uma enorme doçura.
Eu tenho ali na estante a nova tradução da Saga do Nils! Estou em pulgas para lhe pegar e acredito que seja este Outono.
Eliminar