Christine de Pizan foi a primeira escritora profissional, e este livro foi terminado em 1405.
Foi também a primeira mulher (de que há memória) a defender, de algum modo, as mulheres. Não defende, em particular, direitos ou igualdade, mas apresenta argumentos sobre capacidades que eram vistas como exclusivamente masculinas, através de exemplos não só bíblicos, mas também históricos, dos feitos de várias mulheres.
É uma espécie de pedido a nível cultural, e não um pedido de direitos. É uma voz feminina e feminista, sim, mas educada, burguesa, talvez de uma mulher que quer inspirar tanto respeito como o seu marido latifundiário e rico.
Uma primeira ressalva: eu não desgostei do livro. A autora é impressionante em diversas maneiras, e o livro, enquanto documento, é extremamente importante; é-o especialmente para quem tenha interesse em história das mulheres ou história medieval. Mas é um atentado à paciência.
A narrativa toma a forma de uma alegoria: Christine, mulher culta e instruída, quer ler um livro:
(...) rodeada de numerosos livros de diferentes espécies, pois há algum tempo que adquirira o hábito de me lançar em busca do conhecimento (...) procurar, entre as obra dos poetas, algo divertido e fácil de ler. (...) vi que fora escrito por Matheolus. (...) embora nunca o tivesse lido, sabia que, contrariamente a muitas outras obras, esta fora escrita em louvor das mulheres.
(...) rodeada de numerosos livros de diferentes espécies, pois há algum tempo que adquirira o hábito de me lançar em busca do conhecimento (...) procurar, entre as obra dos poetas, algo divertido e fácil de ler. (...) vi que fora escrito por Matheolus. (...) embora nunca o tivesse lido, sabia que, contrariamente a muitas outras obras, esta fora escrita em louvor das mulheres.
Desilude-se, porém, com a linguagem imoral e as ideias que continha, parecendo-lhe uma "obra de difamação", notando que muitos filósofos, poetas e oradores (...) parecem estar de acordo em dizer que a natureza das mulheres é intrinsecamente má e inclinada à moralidade. Christine labuta sobre estes pensamentos, ficando triste, e "aparecem" três figuras femininas, a Razão, a Rectidão e a Justiça, tendo com as três longas conversas, colocando questões e recebendo como resposta estórias e biografias de mulheres, que devem ser utilizadas para que Christine construa a (também alegórica Cidade das Mulheres.
Pagãs, judias e cristãs, as mulheres utilizadas como exemplo partem de uma mitologia e história bastante vastas, sendo, na sua maioria, interessantes. Ao longo da conversa, Christine pergunta coisas como se as mulheres são naturalmente dotadas de bom senso, se as mulheres têm capacidades para "ciências mais eruditas", se as mulheres são dignas de educação formal, por que motivo os homens não confiam nas mulheres, por que motivo nenhuma mulher antes refutou as mentiras espalhadas pelos homens. A lista de alegações é estranhamente familiar: as mulheres não são tão fortes como os homens, não são dignas de confiança, conspiram para a infelicidade dos homens, e ainda, as mulheres querem, secretamente, ser violadas.
"Minha senhora, acredito profundamente no que dizeis e tenho a certeza de que há muitas mulheres bonitas que são íntegras, decentes e totalmente capazes de se proteger contra as armadilhas montadas pelos sedutores. Logo, enraivece-me e aborrece-me que os homens afirmem que as mulheres querem ser violadas e que apesar de uma mulher rejeitar verbalmente um homem, ela de facto não se importa que ele se insinue pela força. Custa-me a acreditar que possa dar algum prazer às mulheres serem tratadas de forma tão vil.
Relembro que este livro data de 1405.
As mulheres sabinas que mediaram a guerra entre as suas famílias naturais e os seus maridos (raptores), como Judite matou Holofernes, como Pórtia se suicidou após a morte do seu marido, Lucrécia, que se matou perante a desonra, Hortênsia, grande oradora, Nicostrata, que inventou o alfabeto latino... Além dos exemplos de mulheres dignas de renome, são também dados nomes de homens que não mereceram os cargos de confiança que lhes foram dados. Isto porque moral, educação, castidade, lealdade, inteligência, devem ser características femininas, mas também masculinas. E ambos os sexos as devem possuir de modo igual.
As visões de Christine de Pizan são maioritariamente progressivas, destacando-se pela negativa o capítulo 11, onde Christine pergunta à razão por que motivo as mulheres não estão autorizadas a advogar um caso nos tribunais, ao que a Razão lhe responde:
(...) podes igualmente perguntar por que motivo Deus não ordenou aos homens que desempenhassem as tarefas das mulheres e vice-versa. Em resposta, poder-se-ia dizer que um mestre sábio e sensato reparte os diferentes trabalhos domésticos pelos seus serviçais. Deus quis assim que o homem e a mulher O servissem de formas diferentes (...) deu aos dois sexos a natureza e as disposições necessárias ao desempenho dos seus deveres (...)
Tenta redimir-se dizendo que as mulheres têm a inteligência necessária, mas está tudo estragado.
Além disto, a narrativa é excessivamente cristã, obcecada com virgindade e castidade, e não menciona a independência das mulheres relativamente aos homens. Claro que pode ser expectável, dada a época, mas não deixa de desiludir quando a maioria dos exemplos fala do valor das mulheres relativamente aos homens que serviram, com quem foram casadas, ou de quem dependeram. Julgo que o estatuto social da autora pode não a ter ajudado a ver para além de um certo privilégio.
Apesar disto, é um livro importante e, por vezes, inspirador. Nesse sentido, vale a pena.
Christine de Pizan questiona os escritos de Boccaccio, de Ovídio, reconhece as circunstâncias difíceis e o esquecimento a que as mulheres eram votadas desde o início da História. Responde aos maldizeres masculinos quanto às mulheres, em geral. É interessante verificar que, apesar das menções finais da Virgem Maria, de Santa Catarina e de Santa Afra, o livro não é baseado na Bíblia. E é por isto que, com as três senhoras alegóricas, quer construir um espaço seguro para as mulheres. É quase utópico, e estas ideias deviam ter pouquíssima popularidade, à data.
Tem sido uma batalha longa.
3,5/5
Terminado em 1405, só esse facto deve ter dado um toque mágico à leitura
ResponderEliminar'Não defende, em particular, direitos ou igualdade, mas apresenta argumentos (...)' Era uma espécie de advogada estou a ver! Pelo menos em espirito, o que já é de louvar sem dúvida
'Mas é um atentado à paciência.' :o
Só desde há muito poucos anos é que as mulheres podem ser advogadas em Portugal sabias? E agora há imensas curiosamente
Pelo que estou a ler parece de facto um livro muito importante, interessante e como dizes, inspirador
De facto, a sua data é o dado mais impressionante do livro!
EliminarHaha, advogada :p ela de facto coloca muitas questões ao longo do livro, tentando, de certa forma, obter respostas que sustentem a tese que defende...
É um bocadinho :$
Não :o desde quando?
É especialmente importante pelo que defende, e quando!
Em Roma houve duas mulheres que exerceram essa função, Amásia e Hortensia assim se chamavam :p mas foram excepções porque mesmo em Roma ser advogado continuava a ser reservado aos homens e assim foi durante muito tempo; em Portugal ainda durante mais tempo foi, só no século XX com a Dra. Regina Quintanilha que começou a exercer em 1913, mas com a necessidade de autorização do Supremo Tribunal de Justiça!
EliminarA Hortênsia é apresentada neste livro como grande oradora :p não como advogada :o não fazia ideia, de facto, muito interessante :p muito obrigada!
EliminarNa altura ainda não existia a advocacia enquanto profissão é por isso :p quem era bom orador, fosse culto etc. - ou seja, tinha de ser de uma família mais abastada - e quisesse, defendia os mais fracos pela honra do acto, nem recebiam nada, muito mais tarde é que começaram a receber honorários (daí o significado, honra-honorários, pela honra que era defender os mais fracos e pobres - pois eram esses normalmente quem precisavam de ajuda)
Eliminar:o bué interessante mesmo, onde aprendeste tudo isso? :$
EliminarEm alguns livros de Direito :p
EliminarGrande fonte de conhecimento :p
EliminarQue excelente síntese! Acredito que tenha sido uma leitura morosa, hoje em dia quase que só com uma justificação académica se arranja vontade de tomar nas mãos este livro. Mas fiquei particularmente interessada na perspetiva da Bárbara e de como, apesar de tudo, seria um livro com conteúdo muito progressista na época. Na referência que fiz a este livro no meu blog, vou colocar referência a esta publicação da Bárbara. obrigada!
ResponderEliminarÉ de facto muito válido como documento histórico, mas pouco mais que isso. E é interessante pelo contexto sociológico que fornece, pelas personagens que invoca, etc. Para quem queira saber mais sobre feminismo e estudos de mulheres, acho fundamental; recreativamente, lá está... é quase necessária a justificação académica :) agradeço a inclusão!
Eliminar(não há necessidade de não me tratar por "tu")
Muito interessante, esta publicação! Desconhecia de todo essa Christine de Pizan. Não sei se alguma vez lerei a obra, mas fiquei feliz por ter aprendido uma coisa nova hoje! Obrigada!
ResponderEliminarVale a pena enquanto documento histórico, especialmente em temas feministas, etc - mais que isso, não recomendo por aí além!
Eliminare obrigada eu!!
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